“O azar do Brasil é ser competitivo nos setores em que os americanos não são”, teria declarado o ex-presidente do Instituto Brasileiro de Siderurgia Antônio José Polanczyk. A frase é quase perfeita para descrever o dilema enfrentado pela política comercial brasileira. Quase, porque outros países _a China, os asiáticos_ também são competitivos em áreas nas quais os EUA deixaram de sê-lo: eletrônicos e telecomunicações, aparelhos da “linha branca”, chips etc. Se não fosse assim, os chineses não estariam conseguindo, neste ano, a espantosa cifra de US$ 83 bilhões de saldo no intercâmbio bilateral. A diferença é que os americanos julgam do seu interesse a liberalização e a importação das mercadorias em que os asiáticos têm competitividade, diferentemente dos setores em que o Brasil leva vantagem, protegidos por poderosos “lobbies” internos.
Uma solução mais teórica do que real seria esquecer nossas vantagens competitivas e tentar concorrer com China, Cingapura, Malásia, Coréia do Sul, nos produtos em que as tarifas e outras barreiras americanas são baixas ou inexistentes. Acontece que muitos desses artigos eletroeletrônicos, equipamentos de telecomunicações, produtos químicos e petroquímicos são justamente aqueles nos quais somos incapazes de competir em nosso próprio mercado, sendo por isso responsáveis pelo assustador rombo da balança comercial brasileira. Modificar essa situação não é impossível, mas demanda políticas ativas de colaboração com o setor produtivo, até agora inexistentes. Seria preciso baratear o custo do investimento, reduzindo os juros, racionalizando o sistema de impostos que pune as exportações, tornando mais eficiente a infra-estrutura de transportes e serviços de apoio ao comércio exterior. São providências que dependem, sobretudo, de nós mesmos, não do sistema internacional. Apesar disso, o que fomos capazes de realizar nesse domínio crucial e decisivo é modesto, para não dizer medíocre.
Resta a negociação, pois não se deve esquecer que só há dois caminhos para um país melhorar de posição no comércio mundial. O primeiro é negociar a remoção das barreiras que impedem a exportação dos produtos em que é competitivo. O segundo, a diversificação e a ampliação da competitividade do setor exportador, é, conforme vimos, mais complicado, já que constitui tarefa de fôlego e leva tempo. Em princípio a negociação traria resultados imediatos, desde que existisse disposição dos parceiros para trocar concessões razoavelmente comparáveis. É a existência dessa disposição que as medidas americanas obrigam a questionar, ao menos em relação à maioria dos produtos em que o Brasil poderia, a curto prazo e sem necessidade de investimentos adicionais, expandir suas vendas externas.
A gravidade das ações do Executivo e do Legislativo de Washington em aço (as salvaguardas), agricultura (a nova lei agrícola) e produtos sensíveis (a autorização para as negociações comerciais) é que elas produzirão efeitos devastadores muito além dos limites da jurisdição dos EUA. No aço, por exemplo, os europeus já anunciaram barreiras preventivas a fim de evitar que as exportações originalmente destinadas ao mercado americano sejam desviadas para a União Européia. No domínio agrícola, o renitente grupo que resiste à liberalização _os 15 da União Européia, o Japão, a Coréia do Sul, a Suíça, a Noruega_ passará a contar com o reforço inesperado de lei que prolonga e solidifica a proteção da agricultura nos EUA e de mecanismo complicador que forçará (e intimidará) os negociadores americanos a consultas específicas e detalhadas a várias comissões do Congresso (ligadas aos “lobbies”), para cada produto sensível do nosso interesse (e eles são quase 300). Se as perspectivas de avanços significativos em agricultura e aço já eram altamente duvidosas, ficam agora muito mais remotas à luz de golpe cuja contundência provém de fatos certos, não de intenções duvidosas e que ameaçam tanto os esforços na Alca como na OMC.
Com efeito, se não vamos ganhar alguma coisa em aço, agricultura, produtos sensíveis, áreas em que temos o que vender, onde é que poderemos receber algo em troca dos sacrifícios e concessões adicionais em nosso mercado? Tome-se o caso da Alca. A negociação já é extremamente assimétrica. Na grande maioria de produtos, os EUA aplicam tarifas muito baixas e sua eliminação não fará grande diferença em relação à atual situação. Se hoje não conseguimos exportar aparelhos eletrônicos ou de telecomunicação com tarifa quase igual a zero, não será amanhã com tarifa zerada que iremos superar Taiwan ou a Coréia. Em compensação, nesses produtos, a média da tarifa brasileira é bastante mais elevada e sua remoção não só deixará desamparada a produção nacional mas dará enormes vantagens às exportações americanas. É por isso que a nossa única e exclusiva possibilidade de ganhar qualquer coisa nessa negociação e de equilibrar um pouco o jogo é obtendo concessões reais, efetivas e substanciosas nos setores que o Congresso e o Executivo querem deixar intocados.
É óbvio que não foi por acaso que os americanos tomaram essas decisões no momento preciso em que já há importantes negociações em curso, quer em Genebra, quer na Alca. Eles (ou os setores protecionistas nos EUA) querem criar fatos consumados, condicionar e limitar as negociações, mudar as regras do jogo. Como se dissessem em linguagem coloquial: “Não vem que não tem. É melhor que esqueçam essas áreas sensíveis e, reconhecendo como o nosso mercado é aberto em todo o resto, se resignem a compreender que nada podemos fazer nos setores complicados”. A isso, temos de responder com outros fatos consumados, não recusando a negociação, mas condicionando-a, de nossa parte, a um mínimo de justiça e equilíbrio. Podemos perfeitamente admitir que, ao liberalizar o comércio em vastos domínios, os EUA servem seu interesse e ajudam outros países a se desenvolver mediante as exportações. Ao mesmo tempo, temos o direito de dizer: “Isso é ótimo para os chineses, os coreanos, os malaios. E nós, o que vocês estão dispostos a fazer pelos nossos plantadores de laranja e exportadores de suco, pelos nossos produtores de aço, de açúcar, de etanol?”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/03/2002.