Há muito tempo deixou o Brasil de ser um “sonho intenso”. O hino não mudou, mas quem presta atenção à letra? Só me dei conta da imagem quando acompanhei Tancredo Neves na visita à Argentina, na véspera da posse que nunca houve. Fevereiro de 1985, no almoço estival que ofereceu ao presidente eleito nos jardins ensolarados da Quinta de Olivos, o presidente Raúl Alfonsín improvisou algumas palavras inspiradas. Sempre o tinha impressionado, declarou, que o Brasil se definisse como “sonho intenso”.
O sonho brasileiro corresponderia ao “American Dream” dos norte-americanos. Não a realidade trivial do dia-a-dia, mas o sonho da pátria como “Terra Prometida”, da prosperidade com oportunidades de vida melhor para todos. E, muito mais que isso. Também a “Cidade sobre a colina” da Bíblia, a excelência moral da Constituição e das instituições, a liberdade republicana fundada na virtude dos cidadãos e dos governantes.
Tempos depois, em fins de 1990, escutei em Paris a última conferência de José Guilherme Merquior, que morreria por esses dias -faz já 16 anos quase. Era a síntese, não da sequência dos acontecimentos políticos e econômicos, mas a história dos projetos, da sucessão de sonhos que gerações de brasileiros tinham sonhado para o país, de José Bonifácio em diante.
O que restaria hoje daqueles sonhos? O cotidiano dos últimos tempos não nos deixa nem dormir, quanto mais sonhar. Mensalões e sanguessugas, falta de crescimento, desemprego e achatamento da classe média, rebeliões do PCC e assaltos na Linha Vermelha, balbúrdia em aeroportos e auto-aumentos obscenos de congressistas abomináveis. Parece um desses pesadelos eternos nos quais se escapa de desastres para cair em abismos sem fundo. A História, dizia Joyce, é um pesadelo do qual não conseguimos despertar.
Seria fácil demais continuar nesse tom. Fácil e inútil. O desencanto gera a desesperança, o sentimento passivo de resignação e conformismo, de que não há nada a fazer e deve-se aceitar viver “vida de calado desespero”. Os que não querem ou não podem esperar transferem o antigo sonho de “fazer a América” para outro lugar, os Estados Unidos, a Europa. Não são poucos: o Itamaraty os estima em cerca de 4 milhões.
E os que ficam? Para esses, duas coisas são necessárias. Primeiro, soluções eficazes para os males que destroem o sonho. Crescimento criador de empregos produtivos e bem remunerados em moeda estável, educação impulsionadora de promoção social aqui mesmo, não no estrangeiro, instituições capazes de evitar a corrupção e o crime, assim como de castigá-los de modo rápido e exemplar quando ocorrem.
Mas as pessoas não vivem apenas de presente, mas sobretudo de futuro, planejando a cada momento o que irão fazer no dia, na semana, no mês ou no ano seguintes. Em outras palavras, vive-se de sonho, de símbolos, de esperança. Quem governa tem de resolver os problemas e, ao mesmo tempo, acender nos corações a esperança, precisa ter competência e visão, encarnar a eficácia e os valores morais e espirituais da sociedade. É isso que Camões queria dizer ao afirmar que “o fraco rei faz fraca a forte gente”.
Sem soluções que funcionem, o sonho não passa de discurso vazio, de retórica cansativa que não convence ninguém. É por isso que, no Brasil, os que governam têm de começar pelas ações, a fim de dar novamente sentido e credibilidade a palavras que se desgastaram, a um sal que perdeu a capacidade de salgar e só serve para ser lançado fora.
Um bom momento para começar é o Natal, festa de renascimento mas também de redenção e salvação. Salvar do quê? Do desespero, do pesadelo, da perda da capacidade de sonhar. Não é à toa que a redenção, da mesma forma que a criação, vem pela Palavra de Deus. E que essa Palavra, feita homem, é chamada de Verbo, o princípio da ação. José, que duvidou, teve um sonho. E esse sonho lhe bastou para que passasse à ação.
É esse o voto que faço a todos nós nesta véspera de Natal: que ele nos traga, agora e para o ano que começa, um país melhor, que nos dê finalmente a prosperidade com justiça, a ascensão de todos com oportunidades iguais, matéria para voltar a alimentar e edificar o Brasil como “sonho intenso”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/12/2006.