No ano cinematográfico do Titanic, não deveria ser difícil compreender que tudo o que é desmesurado arrisca terminar em catástrofe. Já era, aliás, de mau agouro batizar o navio com nome de raça de gigantes que acabou tão mal, condenados às trevas das profundezas do Tártaro.

Vem isto a propósito da mania de fusões que se vem acelerando nos últimos anos e que levou ao casamento de Boeing e McDonnell Douglas, Sandoz e Cyba- Geiger, UBS e SBS, e, agora, Exxon e Mobil, Deutsche Bank e Bankers Trust, Total e Petrofina, Hoechst e Rhône-Poulenc. Costuma-se justificar as fusões com o argumento da economia de escala. Na verdade, sabe-se que, em geral, se esconde atrás disso outra razão: os ganhos fabulosos com as complicadas operações de Bolsa para primeiro baixar e depois valorizar as cotações das empresas que se juntam.

Longe de assegurar maior eficiência, as fusões, sobretudo no domínio bancário, têm sido, com frequência, seguidas por fiascos que acarretaram a demissão dos novos presidentes, como foi o caso do UBS e do BankAmerica. O gigantismo é, às vezes, sinônimo de desorganização e complexidade excessiva. Como descobriu, por exemplo, Alice no País das Maravilhas, ao crescer tanto que já não podia mais calçar as meias nos próprios pés. Os lucros não-financeiros, quando ocorrem, provêm muito mais da eliminação da concorrência que da eficiência da escala.

O que de fato as fusões raramente falham em produzir é a desoladora certeza de demissões de milhares de pessoas. A nova Boeing deve pôr na rua 48 mil empregados, 20 mil a mais que o previsto e um assalariado em cada cinco. A união Exxon-Mobil antecipa licenciar 9 mil empregados (7% do total), e o Deutsche Bank, cerca de 5.500.

Nesse sentido, a mania do gigantismo acentua e agrava a tendência desumanizadora da moderna economia global, lenta em realizar a promessa de acelerar o crescimento mundial (a década de 90 registra a expansão mais medíocre de todo o período do pós-guerra), mas implacável na capacidade de gerar sofrimento e angústia.

O esmagamento da dimensão humana se manifesta também na envergadura desmesurada dessas megaempresas. A junção da Exxon com a Mobil soma uma capitalização total de US$ 240 bilhões, maior do que a maioria das economias dos países subdesenvolvidos. Além da formidável acumulação de poder que isso representa, tal escala de recursos ilustra como o capitalismo se afastou dos seus primórdios, tornando-se cada vez mais concentrador e menos democrático.

Com efeito, uma das explicações do êxito extraordinário da Revolução Industrial em transformar a vida humana de forma comparável ao que havia feito a invenção neolítica da agricultura, 10 mil anos atrás, deriva da emergência de uma nova classe de empresários. Tratava- se quase sempre de gente de extração popular, ex-pequenos proprietários rurais, artesãos ou comerciantes, dotados mais de talento, inventividade e coragem do que de capital. Tiveram êxito porque era, na época, muito mais fácil iniciar novos empreendimentos do que é hoje.

Conforme mostra o grande historiador da economia Paul Bairoch, o capital total (fixo e de giro) necessário para empregar uma pessoa na indústria na Inglaterra correspondia, em 1800, a cerca de quatro ou cinco meses apenas do salário médio masculino de então (na França era de 6 a 8 meses). O baixo custo do investimento industrial se explica, sobretudo, pelo nível pouco avançado da tecnologia: as máquinas eram simples, feitas em grande parte de madeira, podendo ser fabricadas por artesãos tradicionais que copiavam as invenções originais sem pagar direitos. Um século e meio mais tarde, o custo do investimento para criar um emprego na indústria já alcançava a quantia correspondente a 350 meses de salário. À medida que o investimento mínimo indispensável para iniciar uma empresa atinge níveis estratosféricos, fica mais difícil o aparecimento de novos capitalistas, caminhando-se em direção oposta ao lema de Napoleão: “o caminho aberto aos talentos”.

É por isso que um amigo meu, Jean-Baptiste de Foucauld, bate- se na França por idéia que espero poder examinar em futuro artigo, a de que o governo possa garantir a todo indivíduo, após exame criterioso de projeto, o chamado “capital mínimo de iniciativa”, isto é, recursos modestos para iniciar um pequeno negócio, loja, oficina, microempresa familiar etc. Antes de descartar a idéia como utópica, irrealista ou indesejável, fariam bem os leitores em lembrar que boa parte da história do capitalismo brasileiro se confunde com a concessão pelo governo de rendas a grupos (como a das Docas de Santos, no passado) ou de créditos subsidiados do Banco do Brasil, do BNDES, da Amazônia, do Nordeste, a empresários com poder político, e isso até para fins de privatização de estatais construídas com o sacrifício e o dinheiro da sociedade (sem mencionar os favores cambiais da antiga Sumoc, as reservas de mercado da informática, as importações privilegiadas etc.). A única diferença é, como assinalou a professora Maria da Conceição Tavares, que no Brasil o subsídio sempre foi para o grande capital, não para o pequeno empreendedor.

O conceito de “capital de iniciativa” inspira o movimento de microfinança, que venceu, na recente reunião da Unctad em Lyon, etapa decisiva: a de estabelecer o Fundo AXA, a fim de captar, em bases comerciais, recursos de investidores privados para capitalizar os microbancos. Hoje em dia, estima-se que menos de 5% das necessidades de financiamento são atendidos pelos 7.000 microbancos existentes, como o Bancosol, da Bolívia, que tem 80 mil clientes e taxa de retorno de 99%. Nosso fundo será administrado pelo AXA Investment Managers, terceiro maior fundo no mundo (US$ 500 bilhões), que espera gradualmente abrir um mercado de crédito de US$ 100 bilhões, capaz de servir os 500 milhões de microempresários e suas famílias.

É esse o espírito do verdadeiro capitalismo popular e democrático, a volta ao dinamismo e à criatividade dos pequenos empresários cuja iniciativa criou o milagre da industrialização moderna e ainda hoje responde pela maioria das inovações (como foi o caso do computador pessoal). É a afirmação do ser humano, capaz de gerar emprego e transformar a face da terra por meio do trabalho criador contra os titãs que ameaçam suprimir a concorrência e esmagar o homem.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/12/1998.