Só a esperança pode vencer o medo que começa a se apoderar do Brasil e do mundo. Nunca vi eleições como estas, que, em vez de produzir regozijo e celebrações, se concluem sob pesada atmosfera de apreensão.

Para qualquer lado que se olhe, o que se enxerga é ameaça e perigo: o processo de impeachment de Clinton, a garantir o debilitamento do Executivo mais poderoso do mundo; os ataques em preparação contra a Iugoslávia, de desdobramentos imprevisíveis, ação tardia quando já se completa o que todo o mundo previu: a repetição no Kosovo da tragédia da Bósnia; a interminável desintegração da Rússia, transição sem precedente pela duração e escala de sofrimentos, como as agonias dolorosas dessas doenças que torturam, mas não matam.

Jamais o mundo pareceu tão desnorteado e perdido, tão desprovido de senso de orientação, de um mínimo de ordem sustentada pela legitimidade e o poder.
Acabo de chegar a Roma para um congresso e vejo da janela as colunas partidas, as ruínas milenárias de outra poderosa civilização material, do Fórum, o berço do direito moderno, hoje esconderijo de gatos sem dono, terreno baldio onde brotam romãs, limões e se alastra o mato do esquecimento.

A título de amostragem do que vai pelo mundo, colho a esmo algumas frases nos jornais lidos durante o vôo. O “Financial Times” abre manchete na primeira página: “Greenspan adverte sobre perspectiva para a economia dos EUA”. O presidente do Fed, que tem acompanhado a economia americana em base diária durante os últimos 50 anos, declarou: “Nunca tinha visto nada igual. O sentimento de estabilidade que começava a se consolidar nos mercados internacionais foi sendo destruído à medida que a crença no desaparecimento do perigo de contágio da Ásia provou ser um erro completo… O resultado é uma mudança extremamente dramática no perfil de risco do mundo”.

Os investidores sentem aversão crescente por qualquer risco, não só em mercados emergentes, mas em relação até a empréstimos domésticos, preferindo títulos do Tesouro ou mesmo dinheiro vivo.

“É uma resposta psicológica induzida pelo medo. E os mercados não podem operar eficientemente em tal ambiente.”

Nas páginas internas, diz o jornal que o Brasil era a preocupação de ontem. Agora, após o colapso do Long-Term Capital Management (no qual a relação entre capital e dívida era de um para cem!), “o problema é a ameaça da recessão global”. Segundo um banqueiro alemão: “Os ‘spreads’ aumentaram para todos, não apenas para os Brasis deste mundo”.

Greenspan não é o único financista importante dizendo publicamente coisas explosivas. O presidente do Chase Manhattan assinala que o risco real é cada um dizer: “Se o G-7 não estiver disposto a afirmar que o problema é garantir o crescimento global, vou tirar meu dinheiro e assumir menos riscos…”. “É sério. Requer verdadeira liderança do G-7. O problema é que não há liderança no momento.”

Passemos ao “Herald Tribune”, jornal um tanto mais leve que o “Financial Times”. Logo de saída, na primeira página, conta-se (seguido do habitual desmentido) que o governador do Banco do Japão teria confidenciado ao secretário do Tesouro dos EUA que os 19 bancos principais do país estavam curtos de capital e o dinheiro dos contribuintes seria necessário para aumentar a base de capital dessas instituições (como aliás se pratica nos trópicos).

Pouco abaixo dessa notícia, nossos olhos são atraídos pela manchete “O mercado livre irá sucumbir à crise econômica?” e o subtítulo “Alguns temem que reação pode pôr em perigo a globalização”. O artigo caracteriza o encontro do FMI em Washington como “semana de reuniões extraordinariamente sombria e acentuadamente inconclusiva”. Cita, em seguida, uma autoridade financeira: “O que aparentemente se avizinha é um crescente conflito cultural em torno da economia da globalização promovida pelo Ocidente”.

Eu poderia continuar a encher páginas e páginas de citações, mas basta essa amostra, retirada de dois jornais num só dia, 8 de outubro. É preciso, porém, guardar o equilíbrio e o senso de medida. Não, não é iminente a crise final do capitalismo, e até mesmo a recessão global pode ainda ser evitada.

Duas das três maiores economias do mundo, a americana e a européia, apresentam fundamentos sólidos: inflação quase inexistente, tendência à eliminação dos déficits do Orçamento, juros baixos de curto e longo prazos, crescimento moderado, mas, de qualquer forma, crescimento.

O presidente Clinton tenta fazer o que pode, o G-7 começa a despertar, embora não totalmente, e Greenspan, o mais arguto dos banqueiros centrais, usa as palavras com cuidado e só fala para alertar e evitar o pior. Se a economia dependesse apenas de elementos concretos, não haveria razão para pânico.
O problema é que a economia e os mercados são formados de gente não só de carne e osso, mas de nervos e emoções, isto é, a economia não é o sistema planetário, mas algo de instável e imprevisível, psicologia em mais de 50%. É por isso que o medo começa a tomar conta do sistema. E, contra o medo, só serve o antídoto da esperança, desde que ministrado a tempo e p’ra valer, não para enganar.

Nesse sentido, vejo igualmente nos jornais sinais tímidos de esperança. Primeiro, do nosso presidente, ao reconhecer que “houve uma mudança na situação do mundo. Diante (disso), seria irresponsável o governante que não tomasse decisões para ajustar a economia à nova realidade… depender menos de capitais externos… fazer aquilo que todo brasileiro deseja, que é baixar as taxas de juros, aumentar a produção, dar mais emprego… voltar a ter horizonte de crescimento”, não sacrificar no ajuste o conjunto da sociedade.

Se o presidente convencer o FMI a aceitar isso já, não no hipotético futuro pós-ajuste, tudo bem, não precisamos nos preocupar. Do contrário, é melhor tomar nosso destino em nossas próprias mãos.

É isso o que diz o presidente do Banco Mundial, Jim Wolfensohn: “Os pobres não podem esperar por nossas deliberações. A não ser que a gente comum apóie os remédios financeiros, não haverá solução de longo prazo”. É preciso ir além dos programas do Fundo, concentrar recursos em problemas sociais, dar atenção ao número crescente de desempregados, não correr o risco de pôr em perigo a estabilidade política. “Se não houver maior equidade e justiça social, não haverá estabilidade política, e, sem estabilidade política, nenhum pacote financeiro, por mais dinheiro que se ponha nele, será capaz de nos trazer estabilidade financeira.”

Não é um sacerdote que fala, um idealista ou ingênuo sonhador, mas um banqueiro de enorme êxito que se tornou presidente de uma das duas instituições de Bretton Woods e tem a coragem de dizer que o imperador está nu.

Os parâmetros estão claros: de um lado, a opção pelo ser humano, do outro, o rigor puro e duro, aplicado não aos especuladores, mas aos pobres e indefesos. Não é difícil ver de que lado estão a honra e a decência. Ao escolher, os homens de governo estarão igualmente escolhendo entre a esperança e o medo, a alegria e a vil tristeza da cobiça.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/10/1998.