O Brasil sofre persistentemente de dois déficits paradoxais e humilhantes: o contraste entre crescimento econômico e atraso social e a discrepância entre a teoria e a prática das ciências sociais.

Angus Maddison, que se especializou na medição do desenvolvimento, demonstrou que, entre as dez economias mais representativas do mundo, a brasileira tinha sido a de melhor desempenho nos 117 anos entre 1870 e 1987.

Mas, se no passado fomos mais que tetracampeões em crescimento material, estamos perto da lanterninha ao olhar para o desempenho social. Nesse domínio, viramos contra-exemplo. Tanto que o colunista de assuntos trabalhistas do “Financial Times”, Robert Taylor, intitulou “A advertência do Brasil” artigo sobre os perigos do trabalho negro ou informal. O subtítulo era: “Em nenhum outro lugar a tendência ao trabalho informal é mais bem demonstrada do que nas favelas da sociedade mais desigual do mundo”.

Será que merecemos o superlativo? Tenho minhas dúvidas. Acho que até o fato de dispormos de estatísticas melhores faz com que se carregue nas tintas a nosso respeito. Somos péssimos, horrendos. Não talvez os piores do ponto de vista absoluto. É o que me sugerem as viagens aos grotões de miséria do universo. Mesmo, porém, que não sejamos os últimos em termos absolutos, não há sem dúvida caso pior do que o nosso em termos relativos, na comparação entre crescimento e tamanho da economia, de um lado, e índices de bem-estar social, do outro. Dessa perspectiva, é o Brasil o mais contundente desmentido à teoria de que o crescimento automaticamente faz transbordar a água da moringa, eliminando a pobreza e consertando a desigualdade.

De uma forma ou outra, nossos mais brilhantes pensadores buscaram a chave desse paradoxo, e lampejos de explicação se encontram nas obras de Gilberto Freyre, Caio Prado, Sérgio Buarque, Celso Furtado, Raimundo Faoro. À sombra deles, desenvolveu-se riquíssima produção nas ciências sociais, sendo esse possivelmente o campo mais fértil e criativo da cultura brasileira neste século.

No entanto, e é este o segundo paradoxo, são pífios os resultados de todo esse saber sobre nossas mazelas em relação ao seu impacto prático sobre a realidade. O conhecimento sobre os problemas não parece ajudar-nos a seguir o conselho de Marx: não só interpretar o mundo, mas transformá-lo.

Será que é porque as ciências sociais se alienaram por haver importado do exterior “idéias fora do lugar”, sem nada a ver com as condições brasileiras? Ou é o Estado, o governo, que não sabe aproveitar o instrumental conceitual existente para resolver os problemas? Inclino-me pela segunda hipótese: os políticos e dirigentes nacionais, tão afoitos em intervir na economia, mostram-se estranhamente avessos ao ativismo dos americanos, sempre que se trata de agir sobre a sociedade.

Há, contudo, sinais de que algo começa a mover-se na direção certa. Refiro-me, sobretudo, à tendência animadora do Ipea no sentido de propor políticas concretas para solucionar nossos problemas sociais, fazendo jus assim ao “a” de sua sigla, que significa “pesquisa econômica aplicada”. Em anos recentes, o instituto vem produzindo excelentes estudos sobre como combater a pobreza e a desigualdade, proporcionando métodos para avaliar os prós e contras de propostas específicas, como as de renda mínima. Eu mesmo busquei, em cinco artigos publicados nesta coluna em julho-agosto de 1999, divulgar um desses trabalhos, “O combate à pobreza no Brasil”, de março daquele ano.

Por que não dar agora passo decisivo para dotar o governo da capacidade de agir com eficácia nessa área? A França, único “país europeu a dispor de lei contra a exclusão, criou um Observatório da Pobreza. Sem necessidade de estabelecer nova instância burocrática, o Brasil poderia dar essas funções à Diretoria de Estudos e Política Sociais do Ipea, que, na prática, já vem fazendo o que corresponde ao Observatório: estudar a evolução da pobreza, exclusão e desigualdade, avançar propostas concretas para combater esses males, acompanhar e avaliar a implementação dessas políticas. Em entrevista à Folha (13/ 6/99), Ricardo Paes de Barros, co-autor do trabalho citado, dizia que duas coisas eram necessárias para eliminar a pobreza: “Primeiro, decidir que é isso o que se quer; segundo, dar apoios institucionais a quem já trabalha com a pobreza, para viabilizar a decisão”.

A primeira condição está aparentemente preenchida, pois, assim como no período JK o desenvolvimento era a única idéia-força capaz de unir todos os brasileiros, existiria hoje consenso para a prioridade de combater a pobreza e a desigualdade. Se países sujeitos a terremotos gastam dinheiro em situações para prever tais flagelos, é natural que país cuja calamidade é social dê apoio a quem sabe lidar com esses desastres. Só assim asseguraríamos que recursos como os aprovados por lei recente cheguem realmente aos destinatários, sem desaparecer pelos buracos negros da corrupção e incompetência.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 29/10/2000.