Dei esse título ao capítulo sobre o ABC, o projeto de tratado entre a Argentina, o Brasil e o Chile, no texto da fotobiografia do barão do Rio Branco, publicada em 1995 pela Fundação Alexandre de Gusmão. Nele já se sugeria o que vim a dizer de modo explícito em livro mais recente (“Rio Branco: O Brasil no Mundo”, editora Contraponto). Isto é, que de toda a herança transmitida pelo barão, a parte que mais atualidade conserva é a que ele teve de deixar apenas em esboço: a dimensão sul-americana.

Eram três, com efeito, os componentes principais da política externa de Paranhos: o território, o eixo das relações desiguais com as potências de que nos separava um grande diferencial de poder _Estados Unidos e Europa_ e o eixo das relações de relativa igualdade com os vizinhos do sul do continente _Argentina e Chile. O primeiro era, no fundo, problema do passado, herdado do século 19 e que seria resolvido com instrumentos daquele século _a arbitragem e as negociações_, embora manejados com inigualada competência. Ao solucionar sistematicamente todas as questões fronteiriças pendentes, o barão “construiu o mapa do Brasil”, como ele mesmo disse.

Para o eixo assimétrico do poder, problema do presente daquela época, Rio Branco iria conceber o primeiro paradigma global da política exterior brasileira, a “aliança não escrita” com os EUA, que lhe proporcionou a necessária segurança e apoio para lidar com os europeus e os vizinhos em relação aos quais subsistiam disputas.

Já a questão do futuro era edificar um sistema internacional capaz de garantir a paz, promover a segurança e estimular o progresso na América do Sul. Para isso propôs, em 1909, um tratado com a Argentina e o Chile, pelo qual os três países procurariam “proceder sempre de acordo entre si em todas as questões que se relacionem com os seus interesses e aspirações comuns”. A idéia revelou-se então prematura e só veio a realizar-se de forma consideravelmente empobrecida e limitada no tratado do ABC de 1915.

Resgatando a inspiração original, mas de maneira muito mais abrangente e cobrindo a totalidade dos países sul-americanos, o Brasil sugeriu agora a organização em Brasília, no fim do mês, do primeiro grande encontro dos chefes de Estado e de governo do continente.

Tenho a impressão, pela imprensa brasileira, de que ainda não se apreciou o bastante, entre nós, o pioneirismo e o alcance de iniciativa que preenchem o vácuo existente entre os sistemas amplos demais ou os excessivamente estreitos. De um lado, a OEA, o sistema interamericano que engloba os EUA, o Canadá, o México, a América Central, o Caribe e a América do Sul. Do outro, os esquemas sub-regionais que interessam apenas a uma das quatro áreas geoeconômicas e culturais sul-americanas: os Andes, o Cone Sul (basicamente a bacia do Prata mais o Chile), a Amazônia e as Guianas, estas já em parte associadas aos caribenhos.

Faltava algo: um eixo que articulasse essas quatro subdivisões de características específicas e que o fizesse na base do imperativo geográfico de um continente dotado de contiguidade territorial e problemas concretos próprios. Em artigo anterior (Vizinho, “ma non troppo”, 16/7/2000), lembrei a primeira dimensão dessa problemática: a da construção da infra-estrutura física de estradas, ferrovias, telecomunicações e dos grandes projetos de integração energética de petróleo, gás e eletricidade. O tamanho dessas questões não cabe no sapato apertado dos arranjos sub-regionais, mas fica sobrando na bota folgada do hemisfério, onde outros terão prioridades diferentes a se chocar com as nossas.

O mesmo se pode dizer do comércio, da democracia, da melhor distribuição da renda, da política sul-americana, aspectos da conferência que tenciono examinar em separado. O importante a reter é que existem, em cada uma dessas dimensões, elementos especificamente sul-americanos que poderão ser tratados com mais eficácia em escala das Guianas à Terra do Fogo, nem mais nem menos.

Não quer isso dizer que se deva suspeitar de algum ânimo de excluir, hostilizar, minimizar ou subestimar países ou regiões. O mundo contemporâneo é, cada vez mais, um espaço de geometrias variáveis, onde os países participam, sem contradição, de arranjos os mais diversos. Vários dos andinos também desenvolvem laços de cooperação com a associação dos países da bacia do Pacífico, a Apec. Da mesma forma, seria absurdo imaginar que o espaço comum sul-americano devesse exigir de seus aderentes uma espécie de exclusivismo ciumento. É óbvio que nada poderá impedir a um ou a outro de celebrar com os EUA, o México, ou os europeus, acordos de livre comércio, desde que isso seja do seu interesse e não contrarie obrigações contraídas com parceiros sul-americanos. Não faltará quem requeira, para suas necessidades de segurança ou de combate ao narcotráfico, colaboração e assistência de envergadura maior da que estão os vizinhos em condições de proporcionar-lhe e talvez seja esse o caso da Colômbia em relação aos Estados Unidos. Em suma, o projeto que ora se inicia só há de consolidar-se na base dos seus próprios méritos, de sua capacidade de facilitar objetividade a solução de problemas reais. A última coisa de que ele precisa é de que lhe sejam atribuídas fantásticas motivações geopolíticas ou pretensas veleidades de um poder inexistente para contrapor-se a desígnios como os da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).

Afinal, voltando ao ponto de partida, não fica mal lembrar que um dos melhores legados que nos deixou o barão foi seu liberalismo jurídico e seu sólido bom senso. Despidos do gosto estilístico da época, eles merecem ser recordados neste trecho ainda inspirador: “Quando, pelo trabalho de (…) muitos anos (…) tiverem conseguido igualar em poder e riqueza a nossa grande irmã do Norte (…), se então pensarem alguns destes países latino-americanos em entregar-se à loucura das hegemonias ou ao delírio das grandezas pela prepotência, estou persuadido de que o Brasil (…) há de continuar (…) a confiar, acima de tudo, na força do direito, e como hoje pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/08/2000.