Embora arriscada e corajosa, a guerra que o Brasil se prepara para declarar contra os subsídios agrícolas dos países ricos é inteiramente justificável do ponto de vista econômico e moral. Não tem precedentes na história do comércio uma campanha sistemática como essa para questionar o protecionismo agrícola dentro do sistema de solução de disputas da OMC (Organização Mundial do Comércio).

A alguns surpreenderá que a iniciativa coincida com as negociações para a liberalização do comércio agrícola na OMC. Não seria melhor aguardar o resultado dessas negociações antes de acionar o tribunal internacional do comércio? A resposta é “não” por três razões principais. A primeira é que, hoje em dia, os processos judiciais são quase tão eficientes para abrir mercados como as negociações, desde que exista uma boa base legal para ir aos tribunais. A segunda é que fatos recentes, como a consolidação de alguns subsídios, e o aumento de outros, como os da soja, na nova lei agrícola em discussão nos EUA _na versão aprovada pela Câmara os subsídios terão a vida prolongada por 11 anos_ indicam que os negociadores dos países protecionistas em agricultura disporão de pouca ou nenhuma flexibilidade para aceitar voluntariamente reduções substanciais nesse tipo de proteção. A terceira é que, independentemente do resultado dos julgamentos, a ação sinaliza claramente a seriedade da determinação do Brasil e baliza os limites do inaceitável para nós: seja na OMC, seja na Alca, não podemos nos resignar a acordos finais que excluam as áreas nas quais desfrutamos de competitividade indiscutível: aço, soja, suco de laranja, açúcar, etanol etc.

A verdade é que, se não adotarmos essa atitude mais agressiva ou, se quiserem, mais afirmativa, acabaremos de novo vítimas de situações em que os poderosos se comportam na base do princípio “o que é meu é meu; o que é seu é negociável”. Bastam alguns exemplos dos casos que o governo brasileiro se apresta a abrir: contra os EUA em soja, algodão, suco de laranja e contra a União Européia em açúcar. Em soja, os americanos favorecem os produtores com dez programas diferentes, que cobrem todos os aspectos imagináveis em matéria de ajuda, aumentaram os subsídios para US$ 2,8 bilhões em 2001, o equivalente a 54% das exportações brasileiras e pagam aos agricultores um preço mínimo 11% acima da cotação mundial. Em algodão, os subsídios chegaram, em 1998, a US$ 2,3 bilhões, e o montante da proteção aprovado pela Câmara (US$ 0,68 por libra-peso) é o dobro da cotação mundial (US$ 0,30). Em suco de laranja, além da tarifa específica do governo federal, que alcança em alguns anos 65% do preço, o produto brasileiro tem ainda de pagar taxa adicional de 5% ao governo da Flórida, nosso principal competidor. Por seu lado, os europeus importam de suas ex-colônias açúcar a preços artificiais e depois inundam com ele os mercados graças aos subsídios de exportação. Tempos atrás, quando o açúcar caiu a US$ 0,04 por libra-peso, o açúcar de beterraba europeu, cujo custo de produção era cinco vezes maior, conseguiu expulsar o produto brasileiro de mercados como a Nigéria devido aos subsídios maciços.

A luta não será fácil, pois, por incrível que pareça, muitas dessas absurdas subvenções são aparentemente legais, pois as nações protecionistas _neste caso, as mais ricas_ lograram, na Rodada Uruguai, estruturar de tal modo o acordo sobre agricultura que pretendem haver cumprido o compromisso de reduzir os subsídios em 20% em seis anos apesar de, em alguns casos, terem multiplicado por três seus gastos na área. Como se faz essa mágica? Primeiro, escolhendo como base para as reduções anos em que os subsídios foram excepcionalmente elevados. Segundo, criando uma categoria de subsídios permitidos _a caixa verde_ em tese desvinculados da produção, mas que, na prática, muitas vezes garantem o agricultor contra a queda de preços, estimulando-o a aumentar a quantidade produzida já que o governo lhe comprará a colheita.

O acordo atual é tão leonino que até contém uma disparatada “cláusula de paz” pela qual os produtores eficientes (ou excessivamente crédulos, segundo o ponto de vista) aceitaram abrir mão, por certo número de anos, da possibilidade de exercer seu direito e queixar-se aos tribunais da OMC. Por tudo isso, a margem para as ações brasileiras é estreita e não se pode garantir que tenhamos ganho de causa, apesar da justiça de nossa posição e da indiscutível superioridade moral desse desafio ao abuso do protecionismo hipócrita dos poderosos.

Trata-se, porém, de combater o bom combate, e a decisão do Itamaraty e do governo brasileiro merece o aplauso e o apoio de todos, quaisquer que sejam as consequências. Se vencermos, será decisão histórica, capaz de mudar para sempre alguns dos desequilíbrios mais gritantes do sistema mundial de comércio. Se o resultado for menos positivo devido às imperfeições e injustiças das normas vigentes, terá valido a pena demonstrar que não podemos, nem devemos, da próxima vez, engolir acordos que prolonguem ou perpetuem as assimetrias e desigualdades de que somos vítimas.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/04/2002.