Como escrever sobre as oscilações do dólar ou as perspectivas das exportações quando o mundo vive uma tragédia bíblica? Nas “Memórias de Guerra”, De Gaulle relata a difícil visita que fez ao Kremlin, no crepúsculo da guerra, e o sinistro banquete em que Stalin, após copiosas libações de vodca, obrigou os convivas sonolentos a uma interminável sessão de documentários de batalhas e matanças. Ao final, chegado o inevitável momento das despedidas, observa o déspota ensombrecido: “No fim das contas, quem sempre ganha é a morte”.
Diante da morte, todo o resto se reduz à insignificância. Isso é sobretudo verdade em relação às atividades instrumentais: mercados, ações, meros meios de precária sobrevivência, enquanto a “Indesejada das Gentes” não chega. Nesse particular, a vida política não tem sorte melhor que a econômica. No reino da Dinamarca, um dos países golpeados pelo desastre, o primeiro-ministro referiu-se ao provável adiamento das eleições com o comentário de que a disputa eleitoral tornava-se completamente irrelevante neste momento de luto.
Não sei até que ponto tal sentimento, muito forte em toda a Europa Ocidental, é partilhado pelo público brasileiro. Vejo que também choramos algumas perdas, embora de proporções menores que as dos países com relações turísticas intensas com os locais destruídos. Além do mais, poupado por tremores e maremotos, vulcões ou furacões, o Brasil tem muito mais prática das desgraças causadas pela ruindade ou incompetência dos homens do que das da natureza. Seja como for, os leitores brasileiros e os responsáveis pela coluna certamente hão de me perdoar se, nos últimos dias de ausência de dez anos seguidos do Brasil, em meio aos embaladores que me desmontam a casa, eu não tiver estômago para interessar-me pelas vicissitudes fisiológicas do PMDB ou pelo último abuso do incorrigível fisco nacional.
Longe, muito longe disso tudo, o que leio nos jornais ou vejo na televisão são expressões do profundo impacto provocado pelo maremoto. Começo a achar que me precipitei, no artigo anterior, ao subestimar a durabilidade do choque. Esqueci que a diferença, dessa vez, é que as vítimas não se limitam a habitantes desconhecidos de países distantes. No terremoto de Bam, no Irã, pereceram mais de 30 mil pessoas, no de Tangshan, China (1976), foram 250 mil, no Congo, chega a 4 milhões o total de mortos pela guerra civil e a doença, na última década. Mas o que nos dizem essas cifras? Para citar, uma vez mais, o “Pai dos Povos”: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a de um milhão é uma estatística”. Enquanto se tratava de hecatombes uniformes atingindo massas indistintas de iranianos, chineses, congoleses, era difícil ao público ocidental identificar-se com seres cujos costumes pareciam estranhos e incompreensíveis. Agora, porém, quem morre não é só o pescador tâmul, o camponês de Sumatra, mas o velejador norueguês, o surfista sueco, o turista italiano, a criança alemã. Os afogados passam subitamente a ter nome e sobrenome, fotografias sorridentes de instantes felizes. Poderiam ser os vizinhos e, às vezes, o são. Nunca foi tão verdade a frase na entrada do cemitério de Céligny, perto de Genebra: “Ici, l’égalité”, “Aqui, a igualdade”.
É isso o que explica o elã de solidariedade sem precedentes, não só de doações e de ONGs mas de iniciativas originais, a título individual, de pessoas que decidem ajudar de algum modo. De novo se verifica que a gente comum foi muito mais generosa e pronta na sua reação que os governos, os quais, como sempre ocorre em direitos humanos, em proteção do ambiente, em todas as causas nobres, acompanham a opinião pública com atraso e a contragosto. A solidariedade é tão universal quanto a dor, que, se não atinge, a rigor, todos os cantos do planeta, chega bem perto disso. Nesse sentido, pode-se afirmar que é a primeira catástrofe natural globalizada, conforme assinala o professor de geografia da universidade de Genebra Bernard Debarbieux no melhor artigo que li a respeito. Ao ouvir o primeiro-ministro sueco declarar que o maremoto, distante milhares de quilômetros, “constitui o acontecimento mais traumatizante da história da Suécia”, observa o professor, “é como se a história desse país não tivesse mais grande coisa a ver com sua geografia”.
Para nações pequenas e felizes como a Suécia e a Suíça, que escaparam incólumes das guerras mundiais, é tragédia brutal perder centenas, milhares dos seus escassos cidadãos numa calamidade cuja pungência é intensificada pelas circunstâncias do Natal e das férias. No caso suíço, é preciso recuar a 1806, quase há 200 anos, para encontrar desastre natural com cerca de 500 mortos, o que conduz a duas conclusões. A primeira é que esses países são ricos e felizes em parte porque, graças a uma geografia propícia, sofrem menos de destruições da natureza. A segunda é que, quanto mais rico é o país, maior é sua capacidade de prevenir ou minimizar os desastres, como ocorre com os terremotos e os tufões no Japão, onde fazem muito menos vítimas que em países vizinhos mas menos preparados. A menor vulnerabilidade relativa dos ricos só desaparece quando eles se expõem às condições em que vivem os pobres, ainda que fugazmente, ao fazerem turismo. É uma demonstração a mais de que apenas uma solidariedade indivisível é capaz de enfrentar riscos crescentemente indivisíveis, sejam os do terrorismo, sejam os naturais. Essa impossibilidade de ser seletivo e discriminatório em relação tanto aos perigos que ameaçam a humanidade quanto em termos dos remédios a esses males, em outras palavras, essa universalidade da catástrofe é que traz à mente a evocação da Bíblia. Até hoje, os únicos exemplos de desastres simbolicamente capazes de aniquilar toda a humanidade eram o dilúvio, com razão chamado de universal, ou o apocalipse. Hoje, pela primeira vez, o que não passava de virtualidade começa a ganhar realidade histórica.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 09/01/2005.