“Os acontecimentos são como os vaga-lumes nas noites brasileiras: brilham, mas não iluminam o caminho.” Fernand Braudel descobriu a metáfora na noite em que seu carro quebrou na estrada de Feira de Santana. A imagem vinha a calhar para ilustrar sua convicção de que os eventos, por mais ruidosos ou brilhantes que sejam, nem sempre ajudam a compreender o sentido da evolução dos ciclos longos e seculares da história.
É bom ter presente essa nota de cautela, ao tentar extrair alguma conclusão mais duradoura da extraordinária sequência de acontecimentos dos últimos dias. Escrevo na noite de quinta- feira, dia 15, e sem nenhuma ordem cronológica, alinho em rápida sucessão:
1) os EUA reduzem os juros pela segunda vez em 15 dias, a fim de evitar a recessão;
2) a França anuncia sua retirada das negociações do Acordo Multilateral de Investimentos da OCDE, a organização dos países desenvolvidos;
3) após a abrupta desvalorização de 17% do dólar frente ao iene, inexplicável por qualquer lógica inspirada na comparação do desempenho das duas economias, o presidente do Fed, Alan Greenspan, declara nunca ter visto algo parecido em sua vida e confessa temer a radical “mudança do perfil do risco” no mundo e o súbito desaparecimento do crédito;
4) o Fed revela que a perda líquida de riqueza em todos os produtos financeiros americanos, desde o início do deslizamento do mercado de ações após julho, equivale a US$ 1,5 trilhão, perto de 20% do PIB dos EUA;
5) todos os oito principais mercados acionários europeus, exceto um, desabaram em mais de 20% ao longo dos três últimos meses;
6) antes do repique de 15 de outubro, o índice DAX de Frankfurt estava mais de 35% abaixo do ponto culminante de julho e o Nasdaq, de ações de empresas de tecnologia, registrava perda de 30%;
7) na reunião anual do FMI e do Banco Mundial, o presidente deste último, Jim Wolfensohn, torna pública, pela primeira vez, sua divergência em relação à terapêutica de crise receitada pelo Fundo;
8) o Fed lidera pacote de socorro para impedir o colapso do Long-Term Capital Management (fundo de alto risco onde a relação capital/dívida chega a um para cem!), queimando seriamente os dedos de alguns dos maiores bancos europeus, inclusive o UBS, o primeiro deles;
9) o Bank America, principal banco norte- americano, prepara provisão de US$ 1,4 bilhão a fim de cobrir perdas; atingida pela retração da demanda de títulos de dívida de países emergentes, a Merrill Lynch decide cortar 3.400 empregos, 5% do total dos funcionários, e outras empresas financeiras se aprestam a seguir o exemplo.
O que estará acontecendo? Recorrendo à mais impecável das autoridades, o presidente do Fed, temos a explicação. Uma vasta sombra de medo e incerteza se abateu sobre os investidores, levando-os a preferir a maior liquidez possível, a do dinheiro vivo ou depósitos bancários. É a “dash for cash” (corrida para o dinheiro contado) de que falam os americanos. Segundo Greenspan: “a brusca mudança na psicologia do investidor, no sentido de fugir do risco em direção à liquidez e segurança, exacerbou os problemas nos mercados estrangeiros, onde as forças deflacionárias continuam virulentas, e se espalhou pelos mercados financeiros dos EUA”. A fim de evitar a consequência assustadora de um maciço aperto global do crédito, o presidente do Fed tenta repetir, com a crescente frequência das reduções dos juros, sua proeza de outubro de 1987, quando ressuscitou Wall Street mediante dose cavalar de liquidez.
Vamos fazer figa para dar certo. Do contrário, num mundo avesso ao risco e com a liquidez evaporando celeremente, as chances de rolar dívidas de países emergentes como o Brasil não parecem brilhantes.
Se Greenspan admite não saber até onde irá essa tendência ou em que medida ela afetaria os gastos dos consumidores e do setor de negócios nos Estados Unidos, não seríamos nós os que conseguiríamos tirar dos acontecimentos mais do que esse lusco- fusco, esse apaga-e-acende de vaga-lume.
O que dizer então da tentativa de responder à pergunta que me faz um leitor: “O modelo atual de globalização _calcado no neoliberalismo_ está chegando ao fim?” Para não arriscar o destino ingrato dos profetas, posso dizer que ao menos esta particular encarnação da globalização passa por teste dos mais difíceis. Mais talvez do que pela ideologia neoliberal, a globalização corrente é impelida pela liberalização e unificação, em escala planetária, do espaço econômico para a movimentação dos fluxos financeiros, das transações monetárias, dos investimentos diretos e do comércio de mercadorias e serviços.
Com exceção deste último, que vem resistindo aos trancos e barrancos das desvalorizações competitivas das moedas, das ações protecionistas como as recentemente ameaçadas contra o aço brasileiro, da recusa do “fast track” no Congresso americano, os demais ingredientes da economia global encontram- se todos em situação crítica. Os recursos financeiros estão encolhendo de forma assustadora, os controles cambiais e intervenções do governo nos mercados voltam à moda. O impasse na negociação do código de investimento, peça insubstituível da globalização com vistas a “tornar o mundo seguro para as transnacionais”, já representava, antes da definitiva defecção francesa, o sinal mais sério de que o rolo compressor posto em marcha pela queda do muro de Berlim tropeçava em gigantesca pedra no caminho. É a primeira vez que uma negociação-chave para completar o processo de unificação do espaço econômico e de limitação da autonomia decisória dos governos se confronta com desacordo incontornável, não devido à oposição de países em desenvolvimento, mas por desavença entre os próprios governos das economias avançadas, configurando o que os velhos marxistas chamariam de “rivalidades intra-imperialistas”.
Não será provavelmente a mãe de todas as crises, a crise final da globalização. Convém não subestimar a extraordinária capacidade que tem o capitalismo de constantemente reinventar-se a si próprio, como assinalava Marx. O maior inimigo do capitalismo, global ou não, sempre foi ele mesmo, sua propensão a crises cíclicas e destrutivas, mas ele nunca deixou de renascer das próprias cinzas. Esta não será exceção. Em matéria de imprevisto e de irracionalidade, a turbulência atual é para ninguém botar defeito. A ponto tal que o “Financial Times” de domingo baseava seu artigo principal em Alice no País das Maravilhas e na lógica contorcida de Lewis Carroll. Aliás, o editorial daquele dia chamou-se “An Attack of Vertigo”, parecido com o título do meu último artigo de 97, “Vertigo”, em homenagem a Hitchcock. Como os admiradores do mestre adoram reprises, nada mais apropriado que terminar este como concluí aquele, citando a frase do bruxo do suspense: “À lógica do absurdo, prefiro sempre o absurdo da lógica”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/10/1998.