Ao ingressar no Itamaraty faz mais de 60 anos, Sérgio Corrêa da Costa foi despachado para tomar conta do Arquivo Histórico, abandonado até então às escassas luzes, mas empreendedora energia de um contínuo português. No lugar há 20 anos, “seu” Manuel tinha posto ordem aos alfarrábios, embrulhando-os em impecáveis pacotes amarrados de papel pardo que empilhava simetricamente nas centenas de estantes ao longo dos corredores.
Parecia ao jovem Sérgio que estava tudo bem no melhor dos arquivos até descobrir que aquela admirável organização repousava sobre classificação que dividira os maços em três únicas categorias, distinguíveis apenas pelo espírito sutil e a lógica implacável de “seu” Manuel: Vários, Diversos e Miscelânea…
Essa história saborosa, que, “si non è vera, è bene trovata”, abre o livro recém-publicado pela Record sob o título “Brasil, Segredo de Estado”. A intenção original era chamá-lo de “Crônica de uma Frustração”, a queixa de um “rato de arquivo” com paixão pela história, que as vicissitudes da mais brilhante das carreiras _secretário-geral do Itamaraty, embaixador em Londres, na ONU, em Washington, entre outros postos_ cedo desviaram para funções absorventes e prestigiosas, mas cuja glória fugaz lhe deixou n’alma a nostalgia da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”. A obra acabou batizada pelo nome de um dos ensaios que retomam o projeto de livro nunca escrito acerca do Brasil de antes de 1500, isto é, as histórias dos obscuros descobrimentos não-oficiais do país.
A primeira frase desse esboço era justamente: “O Brasil começou como um segredo de Estado” e aludia à tese de que os portugueses teriam guardado secreta a notícia do primeiro achamento das terras brasileiras até que as conveniências políticas aconselharam a fazê-la pública mediante a encenação da descoberta casual.
O autor ainda nos promete essa autêntica investigação de detetive nos porões da nossa proto-história. Seja qual for, contudo, o veredicto sobre a questão, é certo que não faltam à história do Brasil mistérios e episódios tenebrosos ligados às vezes à contrafação de documentos, como as duas famosas “cartas falsas” atribuídas a Bernardes com funestas consequências ou, mais perto de nós, a “carta Brandi”, utilizada por Lacerda contra Getúlio. Não é desse tipo de segredos, hoje correspondentes às misteriosas e comprometedoras gravações telefônicas regularmente divulgadas pela imprensa, que se ocupa o “Brasil, Segredo de Estado”.
Trata-se, como diz o subtítulo, de “incursão descontraída pela história do país”. Como passeio ou caminhada história, abarca um arco dilatado, que parte das origens renascentistas dos descobrimentos e alcança eventos quase recentes como o nascimento do Estado de Israel. Detém-se, no caminho, nas peripécias da vinda da família real e sobretudo dos primeiros e tumultuados anos após a Independência; tenta explorar terra incógnita como o desaparecimento de Luiza Mahim, a insofrida mãe de Luiz Gama, uma das primeiras vítimas dos “desaparecimentos” impunes que enxovalham a história da repressão social no Brasil. Não há capítulo em que não se tenha algo a aprender, como, por exemplo, o que analisa as origens do pensamento político paulista.
Sérgio foi mais feliz como pesquisador do que Oliveira Lima, que se queixava, em texto reproduzido na obra, da sua decepção na Torre do Tombo, ao sempre descobrir nos documentos aparentemente virgens as iniciais a lápis de um ilustre predecessor, Varnhagen. Nosso autor logrou, ao contrário, desencavar e até fotografar peças guardadas a sete chaves como os papéis secretos do Arquivo da Argentina, que comprometem o governo de Buenos Aires, na época em guerra contra o Brasil, na conspiração com os mercenários estrangeiros para sequestrar e, se preciso, assassinar dom Pedro 1º.
De minha parte, apreciei em particular os diversos estudos dedicados a outro período turbulento, o dos anos da consolidação da República sob Floriano e da movimentada e, para nós, nem sempre lisonjeira história das difíceis relações diplomáticas com as principais potências estrangeiras de então. A fim de compensar-nos o orgulho ferido pelas humilhações de fora ou auto-inflingidas, Sérgio teve a inspiração de transcrever na íntegra peça notável, que traz a impressão digital do velho visconde de Cabo Frio e faz jus ao melhor da tradição diplomática brasileira: a nota de rompimento das relações diplomáticas com Portugal, após o asilo concedido a 493 dos revoltosos da Armada sob a chefia do Almirante Saldanha da Gama.
Judiciosamente, Sérgio Corrêa da Costa evitou tanto o perigo de imitar as grandes sínteses interpretativas inspiradas por Gilberto Freyre, Caio Prado ou Sérgio Buarque como o de tentar o caminho da historiografia universitária de que há hoje muitos e competentes cultores. Manteve-se fiel à inspiração do ensaio histórico, invariavelmente construído sobre erudição universal, rigorosa lealdade aos documentos e capacidade de julgamento penetrante e equilibrado. Para nossa alegria, preferiu a variedade e a riqueza na escolha dos temas à concentração exaustiva em algum assunto circunscrito de monografia. Só por isso sua obra seria inapelavelmente classificada pelo bom “seu” Manuel como “Miscelânea”. Não se engane, porém, com o adjetivo “descontraída”. Isso só é verdade no sentido de que o estilo fluído e límpido, a ausência de desnecessárias complicações ou esnobismo intelectual tornam a leitura desse livro não só ocasião de proveito e aprendizado como de pura alegria e deleite.
Sérgio seguiu assim o conselho de autoridade na matéria, José Mindlin, que, após declarar nunca ter lido por obrigação, afirma: “A leitura para mim sempre foi uma fonte de prazer”. É esse prazer intelectual extraído de nossa história que nos oferece “Brasil, Segredo de Estado”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/02/2002.