A caso nos encaminhamos, em relação à dependência externa, para novo consenso oco e ineficaz do tipo do que supostamente considera prioridade nacional a luta contra a desigualdade e a pobreza? Não seria a primeira vez.
Sob a monarquia, todos, a começar pelo imperador, professavam que a escravidão era um mal, o que não nos impediu de ser o último país das Américas a aboli-la, quase três anos após Cuba, ainda colônia espanhola. Era quase total o consenso sobre os fins: a abolição. Quanto aos meios, não faltavam os defensores do método “orgânico”, gradual, indolor: a extinção suave, de morte natural. Sobre a data, nem falar: a maioria limitava-se a dizer que o país não estava preparado, que faltavam braços para a lavoura. Quando dom Pedro 2º submeteu questionário sobre o assunto ao Conselho de Estado, em 1867, só um conselheiro, o visconde de Muritiba, arriscou palpite sobre data exequível: nada menos que 1930, quando os cativos remanescentes seriam resgatados pela metade do preço!
Espalha-se agora, qual tinta em mata-borrão, outro consenso em matéria de fins, o de que urge pôr fim à dependência financeira externa. Haverá talvez um punhado de gente, concentrada no mercado financeiro e em setores do Banco Central, a sustentar ainda que não há mal nenhum na dependência, que ela até serve para “disciplinar-nos” e fortalecer-nos o caráter! Fora esses, não mais de algumas centenas, 168 milhões de brasileiros provavelmente são contra a dependência ou seriam, se lhes explicassem o que é isso. Duvido de que, nas eleições, algum dos milhares de candidatos, de presidente a vereador, defenda a continuação da relação que temos mantido com os mercados externos _o que não garante rigorosamente nada contra a possibilidade de despertarmos no dia seguinte ao das eleições com a descoberta de que tudo continuará como dantes.
A não ser que se tenha o cuidado de não limitar o debate aos fins mas de concentrá-lo nos meios. Não é difícil imaginar uma série de questões que ajudariam nesse sentido. Por exemplo, definir qual a política a seguir em relação ao Banco Central: grau maior ou menor de autonomia, responsabilidade restrita à estabilidade de preços (como na Europa) ou a sua compatibilidade com o crescimento e com o emprego (como nos Estados Unidos), perfil dos dirigentes a serem escolhidos em termos de proveniência profissional e visão do mundo. Que política seria recomendável quanto aos controles de capital e à intensidade da integração do sistema financeiro com os mercados globais: manter o nível atual, revê-lo com vistas a tapar notórios ralos por onde se escoam misteriosos recursos, radicalizar ainda mais o desmantelamento dos controles de capital e câmbio? Que fazer para gerir prudentemente a relação entre juros e câmbio? Haveria disposição para políticas mais ativas, industriais e de atração de investimentos, voltadas à exportação, mas sem as distorções do passado?
Como negociar com firmeza, na Alca ou na OMC, compromissos que afastem o risco de agravamento dos déficits comerciais? Que remédio competitivo poderá ser ministrado a setores responsáveis pelos rombos na balança comercial: zona franca, equipamentos de telecomunicação, eletroeletrônicos?
Essa é apenas uma lista exemplificativa. Podem-se cogitar outras perguntas, com maior grau de precisão e pertinência. O importante é fugir das generalidades e exigir especificidade, não apenas o “quê” mas o “como”. Senão vamos acabar tendo más surpresas. Convém não esquecer que, na Argentina, os eleitores votaram para mudar e acabaram ficando com a política e o ministro da Economia do governo anterior. Entre nós já há, até na esquerda, quem comece a revelar sofreguidão em apaziguar o Moloch financeiro e assim “comprar respeitabilidade”. Não há mal algum em demonstrar senso de responsabilidade mediante, por exemplo, o necessário e unânime compromisso com um mínimo de estabilidade. Desde que esse esforço não conduza a uma geléia geral, aprisionando o governo futuro na mesma armadilha das contradições atuais.
Dessas, o último exemplo está ainda fresco. Após alguns bons discursos presidenciais sobre o que vai errado no mundo e a necessidade de mudanças para valer, na primeira oportunidade de uma reforma concreta _a proposta sobre lei mundial de concordata_, optamos por “mais do mesmo”, isto é, continuar com solução caso a caso, como se fazia até data recente. Se era para isso, como pretender que façamos reformas profundas? Por essas e por outras, cria-se a percepção assim expressa no último livro de Oliveiros S. Ferreira: “Mais do que a retórica (…), o que conta são as ações no campo interno, especialmente (…) a forma pela qual se fizeram as privatizações e se conduz uma política econômica que faz que o Estado esteja prisioneiro do capital financeiro internacional e nacional _se é que se pode distinguir um do outro”.
Tais opiniões não são isoladas ou circunscritas a uma faixa do espectro ideológico. Ao contrário, vão-se tornando de tal modo majoritárias que o próprio governo se antecipou a que elas virassem bandeira da oposição, recuperando-as com sensibilidade política e incorporando-as ao seu discurso e à política de comércio exterior. Foi por essa razão que, ao comentar o lançamento da obra de Oliveiros, observei que as reações à dependência financeira e à evolução das relações com o Mercosul e com a Argentina simbolizavam a ruptura do consenso anterior sobre a estratégia externa do país.
A referência tácita era à declaração de Tancredo Neves, candidato à Presidência em novembro de 84, bem lembrada no recente livro de Celso Lafer: “Tenho mesmo dito que, se há um ponto na política brasileira que encontrou um consenso de todas as correntes de pensamento, esse ponto é realmente a política externa levada a efeito pelo Itamaraty”.
Convido a atenção dos leitores para a qualificação sutil introduzida por Tancredo, como querendo distinguir a política externa levada a efeito pelo Itamaraty (grifado por mim) de outras variantes, pilotadas por setores diversos: alusão talvez à política continental de colaboração entre os aparelhos repressivos, dirigida pelos militares, à política de difícil gestão da crise da dívida, de responsabilidade da área econômico-financeira. Fazendo também minha essa indispensável distinção, parece-me perfeitamente válido voltar a Tancredo como ponto de partida para a seguinte indagação: seria concebível repetir a frase nas circunstâncias atuais?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/12/2001.