No Brasil chamou-se “Um Corpo que Cai”, um desses títulos explícitos demais que costumamos atribuir aos portugueses de anedota (como o nome, fictício ou real, que teriam dado a “Pshyco”: “O Filho que era Mãe”). Para alguns a obra-prima de Hitchcock, “Vertigo” completa 40 anos em 1998. James Stewart, que nos deixou meses atrás, vive a mais alucinante das obsessões: a busca autodestrutiva do amor impossível (Kim Novak), que lhe é repetidamente arrebatada pela morte. A ponto de nos perguntarmos se a paixão não é, no fundo, pela “Indesejada das Gentes”.

Realizado no apogeu da prosperidade do após-guerra e da era convencional de Eisenhower, o filme adivinha o inquietante substrato de medo e insegurança que se escondia atrás da fachada perfeita mas irreal da San Francisco do cenário. No papel do ex-policial doente do mal das alturas, Stewart está sempre a escorregar da realidade para se precipitar nessas intermináveis quedas de pesadelo, onde o terror de cair só não é inferior à angústia de nunca tocar o solo. A história toda é uma estranha parábola dos dias atuais de descontinuidade e sobressalto, em que a incerteza nos faz perder o equilíbrio, sem um ponto fixo onde nos possamos agarrar.

Os dicionários definem vertigem como “o estado mórbido em que tudo parece girar ao nosso redor”. Alguns acrescentam: “E nós também parecemos girar”. Haverá melhor descrição da crise que vem tombando, uma após outra, as peças do dominó asiático, realizando afinal a profecia que a Guerra do Vietnã não havia logrado cumprir?

A primeira questão a indagar é a da causa da vertigem. Dois dos melhores artigos que li fazem essa pergunta. Jeffrey Sachs diz que o FMI deveria buscar a opinião de especialistas internacionais acerca “das origens e implicações de política da crise asiática”. Martin Wolf, no “Financial Times”, delimita ainda melhor o problema: “O sistema financeiro global parece vulnerável a oscilações maníacas de humor. Os poderosos precisam indagar por que as crises surgem com tanta frequência e o que eles podem fazer para preveni-las”.

Não ajuda em nada uma resposta simplista do gênero “todos esses países tinham algo de errado nos aspectos fundamentais”. De fato, quem não tem, exceto talvez Luxemburgo? Amanhã, se a crise atingir os EUA, será fácil dizer que era inevitável, dados o déficit comercial, a volta das pressões inflacionárias do mercado de trabalho ou a “exuberância irracional” da Bolsa. É um pouco como afirmar que o mal que fazemos ou sofremos é culpa da comum herança do pecado original ou, como diria Chesterton, “é porque estamos todos no mesmo barco e todos com enjôo”.

Esse tipo de abordagem só seria aceitável se tivesse permitido algum dom de previsibilidade. Ora, como lembra Sachs, o relatório do FMI tinha o seguinte a comentar sobre as economias coreana e tailandesa poucos meses atrás: “Os diretores acolheram com satisfação o desempenho macroeconômico contínuo e impressionante da Coréia e elogiaram as autoridades pela sua invejável performance fiscal”. Também “elogiaram fortemente o notável desempenho econômico da Tailândia e a consistente performance das autoridades em matéria de sólidas políticas macroeconômicas”.

Mais útil, pois, é se concentrar no caso concreto para tentar entender por que, ao contagiar a Coréia, a crise asiática se tornou uma ameaça mundial. Com um PIB de cerca de US$ 500 bilhões ou praticamente tanto quanto a soma das economias da Malásia, Tailândia e Indonésia, a Coréia é a sexta maior economia em termos de comércio mundial e seus investimentos no exterior, inclusive na Europa, são responsáveis por centenas de milhares de empregos. A desvalorização de sua moeda, o won, cria enormes pressões sobre Taiwan, a China e sobretudo o Japão, com o qual compete frontalmente em automóveis e produtos eletrônicos.

Em editorial de 20 de novembro, o “Financial Times” resumia numa frase por que a extensão da crise à Coréia e ao Japão transformava radicalmente um panorama até então problemático mas localizado. É que, como indicava o jornal, “uma deflação de dívida global é agora ao menos concebível”. Sem negar os pontos fortes da economia coreana, o editorialista apontava as fraquezas: “O crescimento rápido estimulou uma excessiva dependência em dívida. Elevou também os preços da terra, induzindo investimento maciço e financiado por dívida em projetos de má qualidade”. Em 1996, por exemplo, as 20 primeiras companhias coreanas tinham um retorno de 3% sobre os ativos, enquanto os custos dos empréstimos haviam subido a 8,2%! Quando o crescimento se desacelera e a taxa de câmbio perde a estabilidade, os créditos podres começam a desabar e os investidores debandam como no estouro da boiada de “Rio Vermelho”.

“A deflação de dívidas”, ensina o “FT”, “pode então espalhar-se globalmente de duas maneiras. A primeira chega através (sic) da desvalorização e da contração econômica, e a segunda, pelo pânico. É racional para os credores tentar tirar seu dinheiro de uma economia, mesmo se acreditam que ela é fundamentalmente sólida, na medida em que temem que todo mundo fará o mesmo”. É preciso, assim, debelar o pânico. Para isso, pontifica o jornal do alto de sua autoridade: “Este não é o momento para políticas deflacionárias ortodoxas”.

Chegamos aqui ao nó do problema. Como explicar, após tantos pacotes de socorro do FMI e agora do G-7, no caso coreano, que a confiança não se tenha restabelecido? Algo de novo e inquietante começa a ocorrer quando economistas acima de qualquer suspeita como Sachs e Wolf publicam num sisudo jornal financeiro do tipo do “FT” artigos críticos intitulados: “Um poder em si mesmo” e “O mesmo velho remédio do FMI”. Este último traz o subtítulo seguinte: “A prescrição do Fundo para a Coréia do Sul é equivocada. Ela arrisca mergulhar o setor privado numa espiral descendente de dívida e bancarrota”. O “Wall Street Journal” tem soado mais cáustico ainda na crítica à incapacidade de prever das instituições financeiras e chegou a abrigar em suas colunas artigo do ex-secretário do Tesouro dos EUA, William Simmon, sob o título “Abolish the IMF”.

Há nisso tudo muito de exagero e de injustiça, embora editorial do “FT” em 11 de dezembro tenha afirmado: “O programa do FMI parece, de fato, questionável ao tentar apertar o crédito numa economia já em risco devido ao colapso da demanda”. Não tenho espaço para entrar na discussão do mérito. É sugestivo, porém, que não haja o mínimo de consenso até entre economistas e órgãos de impecáveis credenciais ortodoxas ou conservadoras e sobre tema tão central e relativamente bem conhecido. Será um indício a mais de que tudo continua a girar e nós mesmos, crescentemente tontos, perdemos pé na realidade? Quem sabe seria a hora de seguir o conselho do bruxo do “suspense”: “À lógica do absurdo, prefiro sempre o absurdo da lógica”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 27/12/1997.