Razão tinha o sábio do grande sertão: “Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e tantas misérias”.
Véspera de eleição é ocasião oportuna para refletir sobre essa distinção. Sobretudo quando se cogita celebrar, logo depois, acordo com o FMI, mais conhecido por impor “idéias arranjadas” que por saber “lidar com país de pessoas de mil e tantas misérias”.
Na história de nossas tumultuadas relações com o Fundo, pontuadas por negaças e dissimulações a fim de evitar prejuízos eleitorais, jamais se tinha vivido antes, como neste ano, coincidência do dia das eleições com o da abertura em Washington da reunião do FMI.
Essa conjunção astral de tamanha ambiguidade teria certamente dado calafrios ao temperamento mineiro de Juscelino, que enfrentou, 40 anos atrás, situação similar, mas incomparavelmente menos grave. Nessa precisa data, realizavam-se, em 1958, as eleições que consolidavam a maioria PSD-PTB e davam a vitória a Leonel Brizola, no Rio Grande, e Carvalho Pinto, em São Paulo. Redobrando a prudência, JK ainda esperaria até 27 de outubro para anunciar o Programa de Estabilização Monetária, elaborado em consulta informal com o FMI.
Corria o ano da graça do lançamento da bossa nova, da encenação no Teatro de Arena de “Eles Não Usam Black-Tie” e da publicação de “Os Donos do Poder”, de Raimundo Faoro. O Brasil tinha 63 milhões de habitantes, a inflação oscilava entre 15% e 20% ao ano.
A negociação com o FMI girava em torno do aval para empréstimo de US$ 300 milhões (fala-se agora em pacote de mais de R$ 30 bilhões)! Tínhamos conquistado pela primeira vez a Copa do Mundo, batendo a Suécia na final por 5 a 2. Aliás, na semifinal, havíamos derrotado a França pela mesma contagem. Éramos felizes e não sabíamos…
As negociações iriam arrastar-se até o ano seguinte, inaugurado com a entrada triunfal de Fidel em Havana, as manifestações violentas contra o vice-presidente Nixon, em Lima e Caracas, a proposta da Operação Panamericana por Kubitschek.
Mil novecentos e cinquenta e nove seria o ano da publicação de “Formação Histórica da Literatura Brasileira”, de Antonio Cândido, de “Formação Econômica do Brasil”, de Celso Furtado, de “Visão do Paraíso”, de Sérgio Buarque de Holanda, de “Ordem e Progresso”, de Gilberto Freyre, da conclusão de Brasília, da fundação da Sudene, o ano em que Guimarães Rosa e Clarice Lispector chegavam à maturidade do poder criativo, da glória de Didi, Garrincha e Pelé.
A economia mundial vivia sua era de ouro, com o Japão e a Europa crescendo a mais de 5% ao ano, com pleno emprego, antes da inflação e dos choques do petróleo. Os leitores saberão me perdoar pela ponta de saudosismo triunfalista que transparece nesta evocação. Afinal, eu tinha 22 anos…
Lembro-me bem, pois era então primeiranista do Instituto Rio Branco, no Rio de Janeiro, quando, em junho, falando em nome do governo, o deputado Horácio Lafer revelava que os técnicos do Fundo continuavam a insistir na adoção de medidas com impacto sobre o custo de vida e “consequentes perturbações sociais perigosas à tranquilidade do país”. Não conseguindo demover o FMI, anunciava Lafer: “… deu o presidente da República ordem para que os (…) negociadores retornassem ao Brasil”.
A ruptura das negociações provocou grandes manifestações de solidariedade, como o ato público no Catete que marca o reaparecimento de Luiz Carlos Prestes da clandestinidade em que vivia.
Mas, no outro extremo do espectro, o apoio não era menor, como se pode ver no editorial de 20 de junho, no qual, após reprovar a falta de flexibilidade do Fundo, “O Globo” afirma: “É uma advertência que daqui fazemos aos nossos bons amigos americanos, aos quais dizemos que o governo brasileiro há de ter errado muitas vezes, mas que nesta hora está com a razão, está certo ao querer evitar os efeitos (…) de uma política financeira que, embora acertada teoricamente, na prática teria efeitos imediatos desastrosos e explosivos”.
Na mesma linha, discursando, dias antes, no ato do Catete, Juscelino dizia: “O fato de atravessarmos dificuldades transitórias, que nos levam a propor operações de crédito, não significa que devemos ceder em matéria doutrinária, mas de imediatas consequências práticas, ao que possa contrariar a prudência ou o conhecimento mais aprofundado das nossas próprias condições. Não vemos como seguir orientações ditadas por motivos de ordem puramente técnica e que muitas vezes não levam em conta numerosos aspectos de outra natureza”.
É impressionante e, ao mesmo tempo, desalentador como os elementos principais da crítica que hoje em dia se faz à ação do Fundo na Indonésia e na Ásia já se encontravam, completos e irretocáveis, nessas frases.
Para não dizer que essa é uma opinião parcial, vale recordar que os historiadores oficiais do Banco Mundial e do Fundo, ao estudarem as relações dessas organizações com o Brasil nos anos 50, concluíram que elas não só tinham superestimado sua capacidade de influenciar as políticas macroeconômicas brasileiras como haviam pecado por “avaliação extremamente estática e limitada” da capacidade de pagamento do país.
Com taxa de crescimento de 6,8% ao ano durante a década, apesar da inflação e dos problemas cambiais, “o Brasil dificilmente seria considerado não confiável pelos padrões atuais”.
Recolhi essas citações no melhor estudo que conheço das relações econômicas internacionais do Brasil entre 1945 e 1964. Foi escrito pelo meu caro amigo, digno e grande servidor público Pedro Malan. Sei, como ele, que não estamos mais em 1959 e que a situação atual é muito diferente daquela: o Brasil é, ao mesmo tempo, mais importante para a economia mundial e infinitamente mais dependente dela. Não tenho informações que me permitam opinar sobre o que se deve fazer. De qualquer forma, essa é, perante a história, responsabilidade intransferível dos eleitos para decidir em nome do povo brasileiro e em seu benefício.
A eles cabe meditar o que acaso continue válido nesse episódio e refletir sobre as razões dadas por Kubitschek para justificar sua decisão: “Convém que se compreenda (…) que o desenvolvimento do Brasil não é uma pretensão ambiciosa, um desvario, um delírio (…), mas uma necessidade vital. Desenvolver, para nós, é sobreviver, gravem bem os que estão em condições de colaborar conosco, que não necessitamos apenas de conselhos (…), mas de cooperação (…), e que (ela) é altamente rentável a quem se dispuser a ajudar-nos”.
Juscelino, com a responsabilidade principal de velar pelos milhões de brasileiros, lembrava talvez das palavras de outro mineiro, nascido nos sertões do Urucuia, não tão longe de Diamantina, o vaqueiro Riobaldo Tatarana, que confessava: “… medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento”, e ajuntava: “Tanta gente _dá susto se saber_ e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 03/10/1998.