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João Vitor Santos, 13 de Março de 2023
Quando do alto da varanda do Palácio Apostólico, o cardeal Jean-Louis Pierre Tauran, decano do Colégio Cardinalício, em 13-03-2013, anunciou que Jorge Mario Bergoglio era o novo papa, muitos indagaram: um argentino?! E não foram só os brasileiros, que têm uma disputa histórica com os “hermanos porteños”. Aliás, o próprio Bergoglio disse, em suas primeiras palavras, que foram “buscar um papa lá do fim do mundo”. Tal surpresa se deu pelo fato de, depois de séculos, a Igreja ter um pontífice não europeu. Mas essa não foi a única surpresa daquela noite, pois o argentino escolheu ser chamado de Francisco, em referência a São Francisco de Assis.
Depois daquele 13 de março, as surpresas não pararam. Todos se surpreendiam com a simplicidade e austeridade de Francisco. Tal postura tem sido um norte para sua gestão que não apenas é uma Igreja mais simples e dessacralizada como também está mais perto do povo. Para o mestre em Ciência Política, Wagner Fernandes de Azevedo, o Papa Francisco “transformou o papado com a história da Igreja libertadora, principalmente na sua vertente argentina, da Teologia do Povo”. “É uma inversão do eixo de poder, é um papado destronado, descentralizado e, portanto, desocidentalizado”, completa, em entrevista via mensagens de WhatsApp concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Wagner destaca que o pontífice foi capaz de auscultar claramente que vivemos uma transição epocal. “Francisco entendeu que o mundo ocidental, outrora sustentado pelo cristianismo, está em crise. E entendeu que deve propor um novo papel à Igreja nesse novo mundo, sem perder a centralidade do Evangelho”, analisa.
Gustavo Predebon, padre na Diocese de Caxias do Sul, vai além. Para ele, o papa revela ter “a percepção do quanto a hierarquia como um todo não dá conta da realidade do mundo de hoje, e o quanto a Igreja precisa caminhar para realmente apresentar o Evangelho para pessoas do nosso tempo, e não de 400 anos atrás. (…) Por outro lado, creio que nós, ministros e povo fiel, às vezes não conseguimos botar em prática tudo o que o papa traz como novidade. Não estamos aproveitando o momento”, adverte.
Para o antropólogo Antonio Madalena Genz, a transformação que vivemos é tão brutal que lá em 13-03-2013 jamais supúnhamos o tempo que viveríamos hoje. “Há 10 anos seria tomado como insensato alguém que dissesse (…) que daqui a 10 anos existiriam grupos defendendo a ideia de que a terra é plana”, diz. Por isso, considera que “o maior avanço do pontificado de Francisco é ele próprio”. E acrescenta: “o Papa Francisco se dirige ao mundo quando combate um dos traços piores da contemporaneidade, que é essa cultura da indiferença”.
O diplomata Rubens Ricupero observa que “o comportamento do papa é quase como se fosse um pároco, como se sentiu durante a pandemia quando rezava diariamente a missa em Santa Marta, com simplicidade”. Mas nem por isso Francisco se senta na Cátedra de Pedro e se move a partir dela com cheiro de sacristia. Sua liderança e lucidez acerca das crises globais o colocam na ponta de movimentos geopolíticos, um lugar de poucos. E isso, na sua opinião, se mede de diversas formas, inclusive pelos documentos pontifícios: “Sua encíclica Laudato si’ é a mais alta expressão teológica e filosófica da ecologia radical. Não ficam atrás na profundidade e beleza a encíclica Fratelli tutti e a exortação apostólica Evangelii gaudium”, avalia.
O teólogo Luiz Carlos Susin também destaca que todas essas mudanças, os ares novos que Francisco traz para Igreja, têm estreitíssima relação com o Concílio Vaticano II. E é justamente isso que provoca reação, pois há muitos que ainda não conseguem assimilar as luzes acesas pelo concílio. “É sua postura de atualização do Concílio que iria esbarrar na resistência de acomodados, de tradicionalistas, o que inevitavelmente levanta tensões e antipatia. A burocracia da Igreja, o carreirismo ou clericalismo, tem sido um limite imposto como um verdadeiro peso para um papa que deseja leveza”, avalia. Mas nem por isso Francisco titubeia. “É um legítimo filho da Igreja na América Latina e, antes ainda, um portenho filho de migrantes, com um humor próprio de Buenos Aires, mas que mantém a disciplina jesuítica e absorveu a leveza franciscana”, conclui.
“Penso que o maior avanço, em termos de reflexão sobre o catolicismo, sugerido pelo Papa Francisco, consiste em abrir uma profunda discussão sobre o caráter histórico do catolicismo”. É assim que avalia o historiador Eduardo Hoornaert. “O papa sugere considerar o catolicismo tal qual se pratica hoje, em sua qualidade de fenômeno histórico, ou seja, como movimento marcado pela fragilidade, imperfeição e provisoriedade que caracteriza tudo que é histórico”, detalha. Por isso, considera que “entender do atual papa pressupõe compreender que a história é uma ciência que se baseia na convicção que tudo que se constrói na história da humanidade pode eventualmente ser descontruído, reconstruído, adaptado ou reformulado. Eis um pressuposto básico, e penso que o Papa Francisco trabalha com ele”.
Por sua vez, o jesuíta Clóvis de Melo Cavalheiro comenta essa construção que, para ele e para o entrevistado a seguir, materializa-se no pensar a Igreja não apartada do mundo em que está inserida. “A principal transformação por que passou o pontificado foi a incorporação à sua estratégica de beneficiar não somente a Igreja, mas pensar no mundo como um todo, com as suas diferenças culturais, crenças e origens”. Trata-se de um princípio bem claro aos jesuítas que defendem a ideia de ver Deus em todas as coisas. Para Clóvis, é esse o “estilo do Papa Francisco, um homem de profunda espiritualidade inaciana e com grande capacidade de estabelecer as relações entre a ciência e a fé”.
Por fim, o sociólogo José de Souza Martins é categórico e direto: “os avanços de Francisco são um só. Uma síntese. O do reencontro da Igreja com a igreja, da instituição com a comunidade de fé. (…) Francisco tem se empenhado na missão profética de negar a alienação crescente da sociedade contemporânea, que se expressa no desencontro entre fé e vida, na transformação do homem em objeto e coisa e em sua anulação como ser social e sujeito de sua própria história. Seus cinco antecessores fizeram o mesmo”, pontua.
Confira as entrevistas em https://www.ihu.unisinos.br/626893-10-anos-de-pontificado-uma-igreja-descida-do-pedestal-e-o-desafio-da-eclesialidade-posta-de-frente-para-o-mundo-algumas-percepcoes