Rafael Burgos, UOL
Qual avaliação o senhor faz do discurso de abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU, proferido nesta terça pelo presidente Jair Bolsonaro?
O discurso foi principalmente dirigido ao público interno, em especial ao núcleo duro de apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais. Em lugar de adotar tom conciliatório e construtivo, o presidente confirmou que pouco se importa com a opinião do resto do mundo e/ou com as eventuais consequências econômicas e comerciais desfavoráveis de suas posições. Sua preocupação se volta com exclusividade ao apoio interno e, num momento de baixa de popularidade, prefere radicalizar o discurso internacional a fim de reforçar a adesão de seus seguidores.
A Assembleia deste ano destaca como temas centrais os esforços multilaterais para tratar do combate à pobreza, de políticas educacionais, da inclusão e das ações contra as mudanças climáticas. Os quatro temas foram acessórios no discurso do presidente. O Brasil perdeu prestígio para falar sobre esses assuntos?
Mais que prestígio, o Brasil não tem hoje autoridade moral para falar desses quatro temas, nos quais adota invariavelmente posições de retrocesso. Nenhum desses assuntos ocupa posição de relevo nas pautas do governo, nem existem realizações ou propostas que possam ser citadas internacionalmente, como era no passado o caso da Bolsa Família, do Pro Uni, do Minha Casa, Minha Vida, da redução substancial do desmatamento da Amazônia etc.
Prevaleceu, nos 30 minutos do discurso de Bolsonaro, a visão da chamada ‘ala ideológica’ do seu governo, com menções ao “Foro de São Paulo”, ao “socialismo” e com graves acusações, como a de que governos anteriores teriam “comprado parte da mídia e do Parlamento”. O que pretende o bolsonarismo ao levar a sua marca ideológica à ONU?
Mais uma vez, a única explicação reside na motivação interna do discurso. Nos meios internacionais, ninguém leva a sério uma denúncia anacrônica de um movimento historicamente superado como o “comunismo internacional”. O “Foro de São Paulo”, mesmo nos seus dias de apogeu, nunca chegou a ser o bicho-papão pintado pelos ideólogos de direita. Não passava de uma frouxa tentativa de coordenar tendências muito heterogêneas. Ao investir contra esses adversários, o discurso presidencial confunde moinhos de vento com ameaças reais. A ideologia do pronunciamento presidencial provém diretamente do movimento de Steve Bannon, consultado na redação do discurso. Toda a parte final relativa à defesa da liberdade religiosa, moral, de denúncias à infiltração da ideologia de esquerda na cultura, nas artes, na educação, reflete a “franja lunática” de extrema direita que fornece a ossatura ideológica ao governo.
No discurso sobre a Amazônia, Bolsonaro acusou o ‘sensacionalismo’ da imprensa e disse ser ‘mentira’ que ela estaria pegando fogo. Qual a dimensão disso, considerando o aspecto central que o tema da emergência climática ocupa nas discussões da ONU?
Se o presidente desejasse realmente convencer a opinião pública mundial, ele deveria ter apresentado ações, iniciativas, realizações concretas para combater o desmatamento. Ora, em vez disso, o que ele fez foi acusar a imprensa de falsidades, quando é do conhecimento geral que o aumento do desmatamento e dos incêndios foi cientificamente comprovado não somente pela vigilância dos satélites do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mas também pelos da NASA, cujos resultados são indiscutíveis. Ao pretender negar a evidência científica, o discurso demonstra que o governo não tem como defender sua inação cúmplice com a destruição da floresta.
O agronegócio brasileiro será capaz de desafiar as posições do governo nas áreas ambiental e comercial?
Depois desse discurso belicoso, agressivo na forma, no tom, no conteúdo, fica muito mais árduo ao Ministério da Agricultura e ao agronegócio tentar provar que não está havendo destruição em larga escala na Amazônia. Quanto aos dois acordos de livre comércio, o do Mercosul com a União Europeia e o do Mercosul e o EFTA (European Free Trade Association), eles já estavam antes em estado de profunda hibernação, o discurso garantindo agora que nenhum governo europeu terá coragem de submeter os acordos à aprovação dos seus parlamentos enquanto perdurar a situação atual.
No fim de seu discurso, sustentando a tese ‘antiglobalista’, Bolsonaro afirmou, sobre a ONU: “Esta não é a organização do interesse global. É a Organização das Nações Unidas”. O que o presidente quis dizer com isso, e em que medida o seu discurso desafia o princípio do multilateralismo?
Essa parte do discurso contesta a evidência: que existem problemas globais, planetários, que transcendem a esfera e o poder de qualquer país a título individual e só podem ser equacionados em instituições do sistema da ONU com vocação global. É o caso do aquecimento global, proveniente da atmosfera do planeta, das questões de refugiados, das migrações, do tráfico de drogas, de pessoas, do crime organizado em âmbito mundial e outros do gênero. Se tais questões não podem ser tratadas na esfera da ONU, a mais universal e abrangente de todas as instituições, com quase 200 países-membros, onde poderiam ser tratadas?
Na ONU, Bolsonaro leu uma carta do Grupo de Agricultores Indígenas, de tom elogioso à sua política indigenista. Como o senhor enxerga as políticas do governo para os povos indígenas?
Em todos os grupos sempre se encontram diferenças de posições. No entanto, a maioria esmagadora dos povos indígenas reclama, como primeira condição de uma política indigenista adequada, a garantia das terras ancestrais. A orientação de Bolsonaro é o oposto da propugnada pelo Marechal Rondon, que se baseava na garantia da terra e da cultura dos povos originários. O governo atual é cúmplice dos mais retrógrados setores rurais interessados em avançar nas terras indígenas. A hipocrisia da atitude do governo fica patente quando o presidente repete que não concederá um centímetro a mais de terra aos indígenas, embora isso decorra de um direito inscrito na Constituição. Se fosse verdade que o governo se preocupa de fato com a modernização da vida dos indígenas, não se compreenderia que ele negasse aos indígenas sua melhor garantia de sobrevivência: a posse das terras que lhes permita manter seu estilo de vida e cultura.
Bolsonaro fez discurso de tom reativo, atacando antecessores e acusando uma ameaça socialista. Em que medida essa disputa narrativa pelo passado é importante para legitimar as ações do seu governo?
O presidente já disse várias vezes que “o Brasil não é um terreno vazio onde se possa construir alguma coisa, mas um terreno onde é preciso primeiro desconstruir, destruir muita coisa”. Como disse Rodrigo Maia, este é um governo vazio de projetos, sem propostas. Acrescento eu, só tem um projeto de demolição do passado. A ameaça socialista, comunista, do foro de São Paulo, não passam de moinhos de vento confundidos com gigantes. Um dos aspectos mais chocantes do discurso é a referência aos presidentes anteriores, acusados de comprarem parte da mídia e do Parlamento. Jamais antes um presidente brasileiro lavou assim roupa suja em público, trazendo ao maior foro mundial as questões mais sórdidas de política interna. Mais uma evidência de que o discurso mirou o público interno e a política doméstica brasileira.
Na última segunda, o deputado federal Eduardo Bolsonaro se reuniu em NY com Steve Bannon, ex-estrategista da campanha de Donald Trump. Eduardo é considerado o líder sul-americano de “O Movimento”, grupo liderado por Bannon que almeja uma aliança nacional-populista global. Como o senhor vê a proximidade do bolsonarismo com esta figura? Quais as consequências dessa proximidade para a política externa brasileira?
A influência da “franja lunática” de Bannon mancha a tradição da política externa brasileira, caracterizada no passado pelo equilíbrio, o senso de proporções, a edificação do consenso. Ao incorporar as teses conspiratórias de Bannon ao discurso diplomático, o ministro Araújo desmoraliza o Brasil perante o mundo civilizado.
Caso seja aprovada a indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada em Washington, haveria risco à soberania nacional em razão de sua proximidade com Trump e da sua adesão ao projeto de poder paralelo liderado por Bannon?
O pior defeito de um embaixador é se identificar mais com o governo do país onde está servindo do que com seu próprio país. Eduardo Bolsonaro já deu mostras disso ao declarar à Fox News que apoiava a construção do muro para conter imigrantes na fronteira com o México e ao declarar que sentia vergonha pelos imigrantes brasileiros ilegais. Um embaixador desse tipo, ainda por cima filho do presidente, poderá ser o veículo de propostas de Trump para manipular o Brasil em manobras contra países vizinhos. O risco é que ninguém ficará sabendo até tarde demais, pois as propostas não passarão pelo crivo de outras autoridades.
Conforme mostrou o UOL, no início de setembro, a ministra Damares foi a Budapeste participar da “Cúpula da Demografia”, evento que reuniu figuras da extrema direita europeia como o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Como o senhor enxerga este alinhamento internacional do Brasil ao discurso anti-imigração e nativista da extrema direita europeia?
É um alinhamento antinatural, uma vez que o Brasil é hoje um país com mais de dois milhões de cidadãos vivendo e trabalhando no exterior, necessitados, portanto, de proteção. Exatamente o contrário da política xenófoba, de hostilidade aos imigrantes da extrema direita europeia e norte-americana.
O Itamaraty sempre foi considerado uma burocracia autônoma. Com a sua experiência de diplomata e ex-embaixador, o senhor entende que os diplomatas profissionais são capazes de mitigar as consequências negativas da abordagem de Bolsonaro em política externa?
O Itamaraty se encontra hoje “aparelhado” pelos elementos de extrema direita seguidores de Bannon, Eduardo Bolsonaro e do chanceler. Os subsecretários e outros funcionários em posições de chefia são em geral profissionais competentes, sérios, capazes. É limitado, porém, o que poderão fazer para tentar mitigar as consequências negativas da política externa. Um bom exemplo é o destino dos acordos de livre comércio do Mercosul com a União Europeia e a EFTA. Por maiores que sejam os esforços dos diplomatas profissionais, será quase impossível convencer os governos europeus a submeter os acordos ao exame e à aprovação dos parlamentos.
Entrevista publicada no blog Entendendo Bolsonaro (UOL) em 25/09/2019. Confira a publicação clicando aqui.