A diversidade de análises sobre os impactos que a pandemia do coronavírus poderá gerar no mundo globalizado e suas divergências quanto à duração, tamanho do choque e implicações geoeconômicas e geopolíticas, refletem “o óbvio: a incerteza do que vai suceder”, diz Rubens Ricupero à IHU On-Line. “Nem os epidemiologistas concordam em suas previsões. O melhor é abster-se de previsões e ater-se ao que já se sabe na base da observação do que aconteceu na China e nos países afetados em primeiro lugar”, sugere.

Apesar de ser impossível fazer previsões para o futuro, Ricupero pontua que “a maior das lições a retirar do caráter universal da pandemia atual” é que “episódios desse tipo se repetirão no futuro devido à globalização dos contatos”. Ele lembra o alerta feito em 2015 por Bill Gates, fundador da Microsoft, sobre o risco de novas pandemias, tendo em vista a epidemia de Ebola, que acometeu o continente africano entre 2013 e 2015 e matou mais de 11 mil pessoas. “Uma das raras personalidades internacionais que alertou para isso foi Bill Gates, na conferência TED Talks em Vancouver, em 2015, o ano da epidemia de Ebola. Gates declarou então que, se nas próximas décadas ‘alguma coisa matar mais de 10 milhões de pessoas, o mais provável é que seja um vírus altamente infeccioso e não uma guerra – micróbios, não mísseis’. Isso se deve em parte, continuou, a termos investido enormemente em deterrentes nucleares e muito pouco num sistema para evitar e combater pandemias”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ricupero analisa a pandemia do coronavírus a partir da distinção entre acontecimentos e tendências seculares, ensinada pela escola histórica da Revista Anais da França e de Fernand Braudel. Essa distinção indica, explica, que passado o choque de um fenômeno, a história retoma o curso de acordo com as tendências anteriores. “Dessa perspectiva, uma pandemia, mesmo mais grave que a atual pela taxa de letalidade, será sempre um acontecimento de grande impacto e intensidade a curto prazo, mas que tende a se extinguir. Apenas para dar o exemplo mais recente, a gripe espanhola de 1918 causou a morte de cerca de 33 milhões de indivíduos, mas, até a atual pandemia, encontrava-se praticamente esquecida”, exemplifica. Nesse sentido, “o que provavelmente vai acontecer no terreno geopolítico (mas não tem nada a ver com a pandemia, já é orientação que data ao menos de 2015, antes mesmo de Trump) será a continuação da tendência a que aumente a intensidade na competição estratégica entre Estados Unidos e China pelo domínio das tecnologias de vanguarda e, por esse meio, da supremacia econômica, política e militar. A competição, desde que mantida sob controle, isto é, não evoluindo para um conflito militar, deve até acelerar os avanços em tecnologia”. De outro lado, frisa, a “esperança que nos resta” é que esta crise “abra caminho para as reformas do capitalismo necessárias a fim de enfrentar o desafio da mudança climática”.

Ricupero também comenta o comportamento das principais potências mundiais no enfrentamento da pandemia. “As reações têm sido quase exclusivamente nacionais, com nível mínimo de coordenação e cooperação, não apenas em termos globais, mas até regionais. Mesmo a União Europeia revelou baixíssima capacidade de adotar políticas comuns. Pedidos da Itália aos demais países europeus para fornecimento de equipamento hospitalar, respiradores, material de UTI, ficaram sem resposta, pois a maioria dos países decidiu proibir a exportação desse tipo de material e guardá-lo para suas necessidades internas. Os gestos mais divulgados de solidariedade aos italianos vieram, primeiro, da China e, recentemente, de Cuba”, afirma.

No caso do Brasil, ele é categórico na avaliação: “Existe um abismo entre a (falta de) liderança no nível do presidente da República e o setor competente do governo, o Ministério da Saúde, os governos estaduais, municipais, o Congresso. Nesta primeira crise realmente grave de seu governo, o presidente mostrou-se pateticamente incapaz de compreender a seriedade e a natureza da ameaça”.

Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, dentre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984/1985), assessor especial do presidente da República José Sarney (1985/1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).

Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda no governo Itamar Franco. Foi também embaixador do Brasil na Itália e secretário geral da UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil. 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017).

Entrevista publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos em 24/03/2020. Confira a entrevista completa clicando aqui.