Por Rafael Vazquez, de São Paulo
04/04/2022
A guerra entre Rússia e Ucrânia é um evento histórico com potencial para redefinir a ordem econômica mundial, segundo os participantes da primeira edição do ano do debate “E Agora, Brasil?”, realizado on-line na quinta-feira pelos jornais “O Globo” e Valor. Se o impacto mais imediato para a economia brasileira foi o aumento de preços causado pela forte alta do petróleo no mercado internacional, o consenso é de que o mundo pós-guerra levará a uma reconfiguração nas relações internacionais.
Os sinais apontam para a manutenção duradoura das sanções impostas pelo Ocidente contra a Rússia. Nesse contexto, a China desempenha papel chave para o futuro da economia global, novamente sob ameaça de ficar dividida entre dois grandes blocos.
“É um erro dizer que uma nova guerra fria é uma possibilidade. Ela já se iniciou”, disse o diplomata, ex-ministro da Fazenda e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de relações Internacionais (Cebri), Rubens Ricupero. “O problema é saber se vai ou não ter um efeito de permanência. Se permanecer e se agravar, vai levar a um comprometimento maior do que chamamos de globalização.”
No evento, que tem o patrocínio do Sistema Comércio, por meio da CNC, do Sesc, Senac e de suas federações, Ricupero discutiu os efeitos para a economia mundial e brasileira da guerra na Ucrânia com o economista Armando Castelar, Luis Rua, diretor de mercados da Associação Brasileira de proteína Animal (ABPA), Gustavo Theodozio, vicepresidente de investimentos e controladoria da M. Dias Branco, e o senador Jean Paul Prates (PT-RN).
Pode-se chegar a um mundo em que haja dois sistemas de pagamentos diferenciados. Dois sistemas bancários e mesmo dois sistemas de internet”
— Rubens Ricupero, diplomata e conselheiro do Cebri
Para Ricupero, a chance de que o conflito se encerre nas próximas semanas e que um cessar-fogo avance rapidamente para um acordo de paz não está totalmente descartada. Contudo, o mais provável é que a situação não se resolva facilmente. Além disso, as sanções impostas não seriam retiradas prontamente, o que incentiva a Rússia a buscar saídas econômicas que contemplam o apoio da China.
“Pode-se chegar a um mundo em que haja dois sistemas de pagamentos diferenciados. Dois sistemas bancários e mesmo dois sistemas de internet separados, o que atingiria a globalização no seu âmago”, analisou o diplomata, que já foi embaixador do Brasil nos EUA.
Embora a guerra seja da Rússia, o posicionamento da China é visto como elemento fundamental. Os debatedores lembraram que há uma trégua vigente na guerra comercial entre os EUA e o país asiático, mas o presidente americano Joe Biden não retirou as barreiras impostas na época pelo seu antecessor, Donald Trump. “A coisa é mais com a China do que com a Rússia”, observou Armando Castelar, professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ. “A China é o grande ganhador desse episódio. Vai ter acesso a gás barato e ao mercado russo”, afirmou.
Segundo Castelar, a recente guerra comercial entre EUA e China e o uso de sanções econômicas contra a Rússia reforçam a percepção de que a economia virou uma arma. “Cada vez mais, a economia será usada como arma geopolítica. Em vez de mandar soldados, tira do Swift [sistema internacional de pagamentos], impede exportações. Mas isso tem consequência para a forma como a economia funciona. Já aconteceu no Irã, que criou o seu próprio sistema de internet”, destacou.
O Brasil já estava enfrentando a necessidade de controle da inflação, e a guerra trouxe mais um componente para este cenário”
— José Roberto Tadros, presidente da CNC
A tendência, avalia Castelar, é que a aplicação das sanções na escala usada contra a Rússia acelere o processo de desmontagem das cadeias globais de valor. “A China está investindo loucamente para ter os seus próprios chips e não depender dos chips americanos. Vai ter uma desconexão das cadeias globais”, disse, ressaltando que a iniciativa do Brasil de voltar a produzir fertilizantes internamente para não depender da importação da Rússia já entra nesse contexto.
Para o senador Jean Paul Prates (PT/RN), o cenário evidencia a importância de revisitar o conceito de soberania. “[É preciso] recompreender do ponto de vista histórico e estratégico o que é ser uma economia soberana e o que é ter autonomia em determinados insumos e recursos”, defendeu. “Exercer soberania no sentido moderno, que envolve países, governos e diplomacia, mas também grupos de interesse, conglomerados privados, patentes, cérebros. Quem tem isso detém soberania moderna.”
Luis Rua, da ABPA, observou que, desde o colapso da União Soviética e o avanço da globalização nas últimas décadas, a guerra entre Rússia e Ucrânia é a primeira que envolve dois países relevantes para os mercados agropecuários, o que gera preocupações para o setor. E lembrou que o Brasil depende hoje de 85% de fertilizantes importados. “Esse talvez seja o primeiro conflito da era da globalização.”
Gustavo Theodozio, da M. Dias Branco, reconheceu que a companhia, uma das maiores fabricantes de biscoitos e massas do país, tem sido impactada sobretudo pela alta dos preços do trigo. “Quando a gente achava que o mundo ia ficar mais tranquilo, surge a guerra. E no Brasil ainda tem eleição este ano. Estamos navegando num mar revolto.”
Para José Roberto Tadros, presidente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o momento exige cautela dos empresários. “Junto com o drama humanitário de um conflito que está cobrando um alto preço da população civil ucraniana, vem também o efeito na cadeia de suprimentos do setor produtivo, que acaba reverberando em todo o mundo. O Brasil já estava enfrentando a necessidade de controle da inflação, e a guerra trouxe mais um componente para este cenário.”
Matéria publicada no Valor Econômico em 04/04/2022. Clique aqui para ler a publicação original.