Academia Brasileira de Letras
Ciclo em memória dos cem anos da morte de Joaquim Nabuco, 7  de dezembro de 2010.

 

A diplomacia de Joaquim Nabuco sofre de má reputação. Comparadas à luta pelo Abolicionismo na juventude e aos grandes livros da maturidade, a defesa do Brasil no arbitramento sobre a fronteira com a Guiana Inglesa, a legação em Londres, a embaixada em Washington deixam a impressão de suave descida de colina, um doce crepúsculo. Antonio Cândido cristalizou a avaliação da maioria ao assimilar a fase diplomática ao envelhecimento e à decadência. Dando expressão a um dos motivos freqüentes do julgamento, Salvador de Mendonça acusava o embaixador nos Estados Unidos, apesar da inteligência “brilhantíssima”, de tudo enxergar “por uns vidros de aumento”, de ter uma visão “privada do bom senso que assinala o centro da gravidade das coisas reais e da gente sensata” (Luiz Viana Filho, A Vida de Joaquim Nabuco, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 369).

A fim de apreciar na justa medida opinião que se converteu em lugar comum, é preciso introduzir algumas qualificações e matizes. Após as duas primeiras fases da vida de Nabuco, a de principal líder parlamentar do Abolicionismo e a do “luto da Monarquia”, dedicada à criação da obra histórica e ensaística, os últimos anos, de 1899 até o começo de 1910, correspondem basicamente ao do diplomata a serviço não do regime, mas do país.

No momento em que, aos 40 anos, dois terços de sua existência, se encontrava no apogeu do prestígio, afirmado pouco antes na lei de 13 de maio de 1888, a proclamação da República foi para Nabuco catástrofe irremediável. O golpe militar de 1889 representou o fim definitivo da carreira política de uma vocação exclusiva de parlamentar sem inclinação para o poder executivo, do líder inconteste das idéias liberais após o desaparecimento de José Bonifácio, o Moço.

Arrastará os vinte anos que lhe sobrarão de vida num interminável exílio da política interna, exílio interior, em Paquetá ou na casa de Botafogo, compondo sua análise histórica da vida parlamentar e social do Império, ouvindo as histórias pitorescas do velho regime nos saraus monarquistas em casa de João Alfredo; exílio dourado, em seguida, na legação em Londres, na embaixada em Washington, lendo em francês à sobremesa, para pequena platéia de diplomatas estrangeiros, seu drama em versos sobre a perda da Alsácia. Indiscutivelmente o primeiro no combate parlamentar contra a escravatura ou na qualidade analítica da obra histórica, na diplomacia não passou de um brilhante segundo, sem o poder de iniciar e decidir.

Contrasta nisso com a trajetória do barão do Rio Branco, filho, como ele, de um grande político da monarquia. Enquanto Nabuco se destacava muito moço nas lutas da Abolição e nos círculos literários, Paranhos Junior, depois de começo frouxo de deputado sem distinção, mergulhava aos 30 anos de idade em duas décadas de semi-obscuridade no Consulado Geral em Liverpool. Dele só emergiu em 1895, ao ganhar para o Brasil a causa do território de Palmas, tão completamente esquecido que precisou ser apresentado ao público brasileiro em editorial no Jornal do Comércio pelo amigo Nabuco, que observava certeiramente:

“O Barão do Rio Branco, pode-se dizer, era até ontem muito mais conhecido em nosso país pelo reflexo do nome paterno do que pelo que ele mesmo já tinha feito”.

Desde então, a carreira de Paranhos prosseguirá em linha invariavelmente ascendente até se tornar, em 1902, Ministro das Relações Exteriores, cargo em que atravessou quatro governos, só o deixando ao morrer em fevereiro de 1912. Esses mais de nove anos de comando do Itamaraty deram-lhe o tempo e o poder necessários para imprimir forte marca pessoal em políticas variadas sobre temas numerosos: o Acre e as negociações com a Bolívia, a solução das últimas questões fronteiriças, as tensões e a aproximação com a Argentina, a aliança com os EUA etc.

Na posição subordinada de agente diplomático e executor de instruções, Joaquim Nabuco foi obrigado a contentar-se com horizonte de oportunidades bastante mais limitado. Seus papeis, menos centrais, foram desempenhados longe da opinião pública nacional, com exceção das curtas semanas em que veio ao Rio de Janeiro a fim de presidir a 3ª. Conferência Internacional Americana em 1906. Tinham-se invertido as situações e é significativo que o embaixador em Washington deveria morrer longe da pátria, enquanto o Chanceler faleceria dois anos depois no gabinete de trabalho no Itamaraty.

A desvalorização crítica da fase internacional de Nabuco explica-se também pela ingrata sorte póstuma da política de estreitamento de relações com os Estados Unidos, sua principal contribuição diplomática. Ninguém sonharia em contestar a validade perene da Abolição, o acerto profético das páginas que escreveu a respeito da escravatura como a explicação central e “orgânica” do Brasil ou sobre a necessidade de que a extinção do trabalho servil viesse acompanhada de acesso à terra.

O mesmo, contudo, não se pode dizer da sua diplomacia. A maioria dos brasileiros provavelmente estranharia hoje sua adesão à linha diplomática norte-americana. O que nos choca a sensibilidade é a identificação que ora fazemos entre essa linha e o uso e abuso do Big Stick, o Cacetão (na tradução de Oliveira Lima), as repetidas intervenções ianques em Cuba, na República Dominicana, no Haiti, na América Central, na secessão do Panamá. Nabuco não aprovava tais desmandos, mas esses aspectos negativos eram compensados, no seu espírito, pela vantagem pragmática da proteção potencial dos EUA à integridade do Brasil.

Os discursos e as conferências abolicionistas continuam a ser citados naquilo que se ajusta às questões brasileiras atuais. Guardam inteira contemporaneidade e a nenhum dos leitores ocorreria censurá-los por haverem promovido abolição “prematura” ou ruinosa, conforme na época opinaram Sílvio Romero ou Oliveira Lima. Nesse sentido, são mais “contemporâneos”, mais unânimes agora do que quando foram proferidos.

Já no caso dos escritos diplomáticos, até o vocabulário, a nomenclatura, o estilo soam como a retórica declamatória, o vocabulário anacrônico de passado irremediavelmente perdido. Não se trata apenas do estilo, mas da substância. A abolição da escravatura, as preocupações sociais se incorporaram ao acervo permanente das conquistas da história brasileira, ao passo que a opção preferencial pelos Estados Unidos revelou-se transitória e ver-se-ia no futuro crescentemente contestada até ser abandonada nas últimas décadas.

Quase tanto como Paranhos, Nabuco contribuiu para fazer da Aliança Não-Escrita com Washington o paradigma que dominaria a política exterior do Brasil de 1905 a 1961 e voltaria a predominar no breve governo de Castelo Branco, após o golpe de 1964. Desde Jânio Quadros, Afonso Arinos e San Tiago Dantas, no entanto, vai-se esboçar reação, que se imporá finalmente com Geisel e Azeredo da Silveira, fazendo prevalecer um novo paradigma em substituição ao das “relações especiais” com os EUA, pejorativamente designado, a partir de então, como “alinhamento automático”. Era impossível que não sofresse com isso a reputação de Nabuco, que se orgulhava de não haver no serviço diplomático quem o superasse no favorecimento à mais íntima aproximação com o governo americano ou no Monroismo, um desses vocábulos arcaicos que temos dificuldade de entender.

A chave da explicação dessas convicções se encontra no chocante desenlace da arbitragem sobre a fronteira com a Guiana Inglesa. Justifica-se, assim, que a questão fronteiriça figure no título desta tentativa de reavaliação da contribuição de Nabuco à história da diplomacia brasileira. Essa última fase de onze anos coincide com os dois golpes debilitadores do seu vigor físico: a surdez súbita e, logo depois, a doença que lhe acarretaria a morte, a policetemia vera, o excesso de glóbulos vermelhos.

Iniciado em março de 1899 com a aceitação do convite para defender o Brasil no arbitramento sobre a Guiana Britânica, a maior parte do período, quase oito anos, vai transcorrer sob a sombra dominadora do ministério de Rio Branco.

A primeira metade, até inícios de 1905, é problemática e frustrante. Ser ministro em Londres era para os contemporâneos o ápice da carreira diplomática, o posto prestigioso e brilhante ilustrado pelo barão de Penedo e por Sousa Correia. Do ponto de vista da substância do trabalho, entretanto, oferecia muito pouco, uma vez que para a poderosa Inglaterra do crepúsculo vitoriano tanto o Brasil quanto os latino-americanos despertavam interesse apenas periférico. A legação em Londres serviu, sobretudo, de base conveniente para a preparação da defesa brasileira. Assessorado por pequeno grupo, Nabuco redigiu quase sozinho os 18 tomos em francês da memória entregue ao árbitro em 1903, mais tarde publicada sob o título de O Direito do Brasil.

A divergência era mais complicada do que os dois arbitramentos anteriores nos quais a defesa estivera a cargo do barão do Rio Branco: o de Palmas, com a Argentina (laudo em 1895) e o do Amapá com a França (1900). As dificuldades adicionais provinham não apenas de termos agora como adversária a potência hegemônica mundial, mas por serem mais duvidosos e controversos os títulos invocados pelo Brasil. Por estarem conscientes do risco, muitos estadistas brasileiros, inclusive Paranhos, teriam preferido resolver a pendência por negociação direta, solução que se frustrou quando Campos Sales rejeitou proposta inglesa de compromisso julgada aceitável por Rio Branco e Nabuco.

Escolhera-se como árbitro o jovem rei da Itália, Vitor Emanuel III, que iniciava sob auspícios favoráveis um reinado de mais de 45 anos que se apagaria, sob a sombra desonrosa do fascismo, na terrível tragédia da Segunda Guerra Mundial. Emitido em junho de 1904, o laudo julgava que nenhuma das partes havia demonstrado de forma completa os direitos alegados, resolvendo dividir entre elas o objeto do litígio. O critério geográfico adotado na partilha terminou por favorecer o Reino Unido com algo mais de 19.000 km² e um pé na bacia amazônica, contra 13.000 km² para o Brasil.

Não chegava a ser uma catástrofe; cotejado, todavia, com as vitórias cabais e indiscutíveis de Rio Branco, o desfecho possuía sabor de derrota e assim foi sentido pelos contemporâneos e pelo próprio advogado, que exclamaria dramaticamente: “Será a causa de minha morte!”

Nenhum país gosta de derrotas e possivelmente por isso, a questão mereceu pouco estudo dos nossos historiadores diplomáticos, que tampouco revelaram até hoje apetite exagerado por outro de nossos históricos revezes, a Guerra da Cisplatina. Teve-se de esperar até o século XXI para dispormos da primeira análise mais imparcial e pormenorizada, a tese de José Theodoro Mascarenhas Menck, na Universidade de Brasília, construída sobre documentos britânicos e italianos, alguns inéditos e que levou o nome de Brasil versus Inglaterra nos Trópicos Amazônicos: A Questão do Rio Pirara (1829-1904), (Brasília: Universidade de Brasília, Departamento de Historia, tese de 2001).

Ressalta Menck em suas conclusões que o litígio do Pirara, como era então conhecido, diferia fundamentalmente das arbitragens precedentes. Estas consistiam principalmente em “identificar, com precisão, os acidentes geográficos que haviam sido escolhidos em tratados coloniais como limites (…) enquanto o litígio do rio Pirara versou sobre quem havia legitimamente ocupado o território contestado”. Em outras palavras, as questões de Rio Branco se limitavam a um problema histórico-geográfico, ao passo que a de Nabuco era, sobretudo, jurídica, sendo assim tratada pelo advogado brasileiro.

Afirma o estudioso não haver encontrado nos arquivos italianos e britânicos nenhuma indicação de que tenha existido parcialidade em favor dos ingleses por motivos estratégicos e políticos, conforme se acreditou longamente no Brasil. Contudo, o árbitro teria cometido um erro jurídico ao fundamentar a solução nos princípios definidos a propósito do Congo pela Conferência de Berlim em 1885. Reafirmados em 1888 pelo Instituto de Direito Internacional, esses princípios pretendiam ter valor universal, mas jamais haviam sido aplicados nas Américas, não tinham sido subscritos pelo Brasil nem poderiam ser invocados em controvérsia anterior à Conferência. De acordo com a tese de Berlim, o único meio reconhecido de adquirir e conservar a soberania territorial era a exigência de posse atual baseada na ocupação efetiva, ininterrupta e permanente de todo o território em litígio e não só de parcela dele.

Em carta a Tobias Monteiro, de 18 de junho de 1904, o ex-advogado do Brasil aludia às conseqüências nefastas que os princípios embutidos na sentença do rei da Itália poderiam produzir caso aplicados a boa parte do território brasileiro: “Se lhe sujeitássemos a nossa soberania sobre dois terços do Brasil, ele diria que não temos direito algum” (Cartas a Amigos, t.II, p. 169). Dizia em outro escrito: “Com os princípios modernos quanto à soberania de territórios não ocupados, haveria somente no vale do Amazonas campo vastíssimo para o estrangeiro, sem tocar a orla efetivamente apropriada por nós e outras nações”.

Menck conclui que “o Brasil perdeu a demanda porque o árbitro aplicou ao caso princípios jurídicos que não haviam sido cogitados pelas partes litigantes (…) não se pode(endo) concluir que o advogado brasileiro errou na condução jurídica da lide, pois muitas eram as razões para afastar os princípios invocados pelo laudo arbitral” (tese citada, p. 397).

Se erro houve, teria sido na escolha do árbitro. Retardatários na disputa por colônias devido ao atraso da unificação nacional, Alemanha e Itália naturalmente tinham interesse em promover a mudança do Direito Internacional em favor de doutrinas que minimizassem a importância da primazia histórica. Quatro anos antes da sentença, Nabuco não só percebeu a evolução adversa que se delineava, mas sua motivação profunda, ao prevenir o ministro do Exterior, Olinto de Magalhães, de que “… nenhuma confiança mais me inspira em uma causa como esta nenhum juiz europeu; as idéias européias são fundamentalmente diversas das americanas em questões dessa natureza. Os juízes com quem poderíamos contar seriam os homens da antiga escola, mas estes nenhuma influência exercem na transformação do direito, que se tem de adaptar aos fatos da nova formação dos impérios coloniais…” (ofício ao ministro O. de Magalhães, 19/5/1900, História do Arbitramento por Joaquim Nabuco, AHI, p. 22).

Aliás, foi do ministro a decisão de recusar o nome do Grão Duque de Baden, preferido por Rio Branco e Nabuco, o que levaria à opção pelo rei da Itália. Paranhos esperava que o Grão Duque confiasse o exame do litígio “aos sábios da universidade de Heidelberg”, os “homens da antiga escola” a que se referia o malogrado advogado brasileiro, mas tampouco há garantias de que, em plena era da expansão do imperialismo alemão, essa solução tivesse realmente se revelado mais propícia do que a finalmente adotada.

João Frank da Costa, autor do melhor estudo até hoje composto sobre a diplomacia de Nabuco, analisa longamente a questão, lembrando que, do ponto de vista jurídico, os princípios de Berlim “colocavam em situação precária […] os imensos territórios despovoados da América do Sul”, vistos como “res nullius”, terra sem dono, nessa época de ambições coloniais exacerbadas. O único meio de tornar seguros dois terços do território brasileiro seria, para o nosso defensor, a Doutrina de Monroe: “Não vejo nenhuma outra intuição da qual dependa tanto a conservação do nosso grande todo nacional”.

Dessa forma, a principal conseqüência do insucesso de Nabuco no pleito da Guiana Inglesa teria sido sua conversão definitiva ao Monroismo e à Aliança Não-Escrita com os Estados Unidos, que propunha como “uma espécie de aliança tácita, subentendida entre nossos dois países”. Recomendava, antes mesmo de tornar-se embaixador, que “a nossa diplomacia deve ser principalmente feita em Washington”. Concluía: “Uma política assim valeria o maior dos exércitos, a maior das marinhas, exército e marinha que nunca poderíamos ter” (João Frank da Costa, Joaquim Nabuco e a política exterior do Brasil, Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 48-49).

Era, como se vê, programa basicamente defensivo, moderado e exeqüível por coincidir com o interesse e a posição notória dos Estados Unidos. Não visava a objetivos fantasiosos e irrealistas como o de instrumentalizar o apoio de Washington para a supremacia brasileira na América do Sul, como ocorreria mais tarde. Observa João Frank que “a obra de aproximação com os Estados Unidos e de plena realização do continentalismo” passou a ter […] para Nabuco, a mesma importância que outrora a questão capital da abolição”, como ele mesmo admitiria mais tarde no banquete em sua homenagem no Cassino Fluminense durante a 3ª. Conferência Interamericana no Rio de Janeiro, (discurso transcrito na “Gazeta de Notícias” de 24 de julho de 1906): “O destino queria que este resto de vida (…) pudesse ser empregado em uma causa, um serviço, que (…) encheu completamente na minha alma o vazio que aquela grande idéia tinha deixado. Eu me refiro à aproximação entre as duas grandes Repúblicas do Norte e do Sul” (João Frank da Costa, o. cit., p. 92-93).

O iniciador dessa obra de aproximação, transformada por Nabuco na causa a que dedicou o final da existência, foi o barão do Rio Branco, que a descreveu como o deslocamento, de Londres para Washington, do eixo da diplomacia brasileira. O primeiro ato desse movimento foi, em 13 de janeiro de 1905, o anúncio de que o Brasil e os Estados Unidos haviam decidido elevar ao nível de embaixadas suas missões diplomáticas em Washington e no Rio de Janeiro, iniciativa com a qual nada teve a ver Nabuco, que chegou a expressar dúvidas quanto à conveniência ou oportunidade do que, na época, era visto como “luxo injustificável”, “megalomania condenável”, “grave erro de política internacional”, segundo fulminou o Jornal do Brasil, de 14 de janeiro de 1905.

Hoje em dia é difícil entender porque se considerava insólito um ato de utilidade óbvia. Um século atrás, todavia, as embaixadas eram espécie raríssima, apanágio exclusivo das grandes potências. Em Washington, existiam só sete, todas, com exceção do vizinho México, representações das potências de primeira ordem que constituíam o Concerto Europeu. No Rio de Janeiro, não havia nenhuma e o Brasil, mesmo em Londres, era representado por um ministro. A elevação ao nível de embaixada, que não podia ser decisão unilateral, era considerada como mudança qualitativa das relações entre dois países. Do ponto de vista dos Estados Unidos, o ato expressava, pela linguagem do formalismo protocolar, que o Brasil se tornava o principal parceiro na América do Sul. Para o Brasil, além do aspecto central salientado por Rio Branco – o deslocamento do eixo da diplomacia — a escolha para Washington da mais alta expressão do serviço diplomático, de alguém que deixara marca de destaque na história e na cultura do país, sublinhava e realçava a importância do gesto.

A fim de entender a motivação de personalidades como Paranhos e Nabuco é preciso não perder de vista que viveram seus anos de maturidade durante o apogeu do imperialismo europeu. Aproximavam-se dos 40 anos quando a Conferência de Berlim, sob a presidência do Chanceler Otto von Bismarck, promoveu o desmembramento do Congo e da África como se estivesse trinchando um peru.

Assistiram à imposição à China dos tratados desiguais e dos portos exclusivos, à abertura forçada do comércio e da navegação do Japão, à amputação, fatia a fatia, do Império Otomano, à conquista da Indochina, ao bombardeio de Valparaíso. Como todos os contemporâneos, indignaram-se com o esmagamento da resistência dos Boers da África do Sul. Vinte anos antes, haviam sido testemunhas da tentativa de Napoleão III de conquistar o México para Maximiliano, no momento em que a Guerra de Secessão distraía a atenção dos EUA.

A rivalidade por colônias e protetorados, que por pouco não provoca um choque entre a França e a Grã-Bretanha no incidente de Fachoda ou entre a Alemanha e a França em Agadir; a disputa pelo espólio otomano entre a Áustria e a Rússia nos Bálcãs; a corrida armamentista desenfreada; a emulação naval entre alemães e britânicos; a exacerbação dos nacionalismos eram a face oculta da lua, o lado sombrio e ameaçador da Belle Epoque.

Nenhum dos dois protagonistas da virada da política externa brasileira, a partir de 1905, teve a desventura de sobreviver ao naufrágio do seu mundo e do seu tempo. Morreram ambos, Nabuco no início de 1910, Rio Branco, de 1912, na véspera da catástrofe anunciada pelos canhões de agosto de 1914, o estrondoso finale wagneriano do último e prolongado ato do século XIX. Tudo isso nos dificulta compreender às vezes a sensibilidade e as reações dos dois últimos grandes estadistas do século XIX brasileiro.

Representativos do que esse século teve de melhor, fiéis ao seu espírito, foram, no entanto, capazes de perceber, com maior argúcia do que a maioria dos contemporâneos, que, por baixo do aparente brilho, o período de hegemonia da Europa se aproximava do fim. Foi por terem detectado os primeiros sinais de realidade nova – a de que o eixo do poder e da diplomacia mundiais derivava em direção aos Estados Unidos – que agiram da forma que sabemos. Tal ação denota realismo, não visão idealizada do mundo, como quiseram crer muitos dos críticos, esses sim retardatários na compreensão da direção em que se movia a História.

O embaixador em Washington, em particular, sempre mais capaz de teorização e conceituação que o chanceler, deu cedo expressão a um pensamento surpreendentemente original e moderno na apreensão da realidade internacional como cenário de oposição e disputa de sistemas de forças rivais, movidas pela luta de poder definido em termos de interesses. Mais do que a qualquer outro, deve-se a ele a criativa elaboração do conceito de um sistema internacional separado das Américas, distinto do europeu, reservado para ser idealmente espaço de paz e colaboração, em contraste com a essência agressiva e beligerante do sistema europeu de então.

Percebia que o mundo não constituía ainda um sistema global unificado como em nossos dias. O que existia era o sistema europeu tradicional da Balança ou Equilíbrio do Poder, dominado pelas potências que controlavam a África e a Ásia, dirimindo suas disputas por concertação entre elas ou pelo recurso freqüente à força. Diante disso, a massa amorfa da América do Sul confrontava-se ao dilema que descreveu como sendo a escolha “entre o Monroismo ou a recolonização européia”.

A “zona neutra de paz” seria, por conseguinte, uma espécie de segundo bloco ou pólo, que contrastaria com o do Velho Continente, conforme descreve com essas palavras: “A América, graças à Doutrina Monroe, é o Continente da Paz, e essa colossal unidade pacificadora, interessando fundamentalmente outras regiões da Terra – todo Pacífico a bem dizer – forma um Hemisfério Neutro e contrabalança o outro Hemisfério, que bem poderíamos chamar o Hemisfério Beligerante” (Joaquim Nabuco, Discursos e conferências, Rio de Janeiro: B. Aguilar, sd, p. 146-147).

Diante das ameaças de um mundo que estivera sempre à mercê do monopólio do poder dos europeus, o que ele buscava era um equilíbrio bipolar, uma relativa desconcentração do poder que servisse de proteção a nações desarmadas como o Brasil.

O que havia criado as condições de possibilidade para a diplomacia de Rio Branco e Nabuco fora a conquista efetiva da condição de grande potência pelos Estados Unidos, não a Doutrina de Monroe. Remontam, de fato, aos primeiros anos da embaixada de Nabuco os dois acontecimentos que simbolizam para os historiadores da política externa americana a emergência dos Estados Unidos como potência de primeira grandeza em âmbito planetário. O primeiro, em 1905, foi a mediação de Roosevelt para pôr fim à guerra russo-japonesa no Extremo Oriente; o segundo, no ano seguinte, decorreu da participação dos EUA, pela primeira vez em assunto puramente europeu, extra-hemisférico, na Conferência de Algeciras, após o incidente de Agadir a respeito do Marrocos, entre a França e a Alemanha.

Vinda logo depois da guerra hispano-americana, da incorporação de Porto Rico e das Filipinas, da imposição de virtual protetorado sobre Cuba, a presidência de Theodore Roosevelt marca a vigorosa afirmação do poderio ianque, não só nas imediações do território americano, mas em toda a parte.

O Barão e Nabuco julgaram cedo e corretamente o caráter irreversível dessa transformação, passando a agir sem demora para que a diplomacia brasileira tirasse proveito da oportunidade que estava em vias de se abrir. É o que Paranhos declarava explicitamente neste despacho de 1905 a Washington: “A verdade é que só havia grandes potências na Europa e hoje elas são as primeiras a reconhecer que há no Novo Mundo uma grande e poderosa nação com quem contar […]. As definições da política externa norte-americanas são feitas […] sem ambigüidades, com arrogante franqueza, sobretudo quando visam os mais poderosos governos da Europa, e o que acontece é que estes não protestam nem reagem, antes acolhem bem as intervenções americanas…”.

No banquete (citado acima) do Cassino Fluminense, o embaixador novamente defendeu a recém-adotada orientação com argumentos de realismo. Suas palavras soavam como um desafio aos críticos: “a nossa aproximação com os Estados Unidos é uma política que tem (…) a maior de todas as vantagens que possa ter qualquer política — a de não ter alternativas, a de não haver nada que se possa dar em lugar dela, nada que se lhe possa substituir porque a política de isolamento não é uma alternativa e não bastaria para os imensos problemas que espera o futuro deste país” (apud Carolina Nabuco, A Vida de Joaquim Nabuco, 4ª Ed., Rio de Janeiro: Livr. José Olympio Ed., 1958, p. 424).

Olhando para trás, é difícil discordar. Não existia a alternativa européia já que a proteção buscada visava justamente à ameaça do imperialismo europeu. Os que favoreciam a opção da Europa idealizavam e esqueciam o passado diplomático brasileiro. Durante as primeiras décadas depois da Independência, a energia diplomática do Brasil foi gasta, acima de tudo, em sacudir a tutela britânica imposta com os tratados desiguais firmados por D. João VI em 1810 e confirmados em 1825 como preço da mediação da Inglaterra no reconhecimento do país independente. Essas décadas seriam dominadas pelo conflito cada vez mais violento com Londres a propósito da supressão do tráfico. Por muito tempo havia sido a preocupação primordial dos estadistas do Império acabar com os tratados que perpetuavam a inferioridade do Brasil perante as potências européias e lhe impossibilitavam elevar as tarifas de importação e assim aumentar a receita do Tesouro.

Nossas relações com a Grã-Bretanha haviam sido frequentemente tormentosas e sempre assimétricas, culminando com o brutal bloqueio naval do Rio de Janeiro e a ruptura diplomática na questão Christie, em 1863. Ao contrário de quase todos os demais sul-americanos, o Brasil tinha na região das Guianas fronteiras terrestres com três países europeus. Aproveitando-se da confusão dos primeiros anos da República, os ingleses haviam ocupado a ilha da Trindade, em 1895, e com os franceses tínhamos tido incidentes sangrentos nos garimpos do Calçoene.

Em dezembro de 1905, a violação da soberania brasileira pela canhoneira Panther por pouco não ocasiona um choque de incalculáveis consequências com a arrogante Alemanha do Kaiser. A gravidade do episódio pode ser medida pelo telegrama enviado na ocasião por Rio Branco a Nabuco: “Trate de provocar artigos enérgicos dos monroistas contra esse insulto. Vou reclamar […] condenação formal do ato […] Se inatendidos, empregaremos a força para liberar o preso ou meteremos a pique a Panther. Depois, aconteça o que acontecer” (apud J. F. da Costa, op.cit., p. 232). O conflito acabou desmontado pela atitude conciliatória alemã, para a qual contribuiu o apoio unânime ao Brasil da imprensa americana e a consciência que tinha o governo de Berlim da mobilização diplomática efetuada por Nabuco em Washington.

Além da ameaça potencial do imperialismo europeu, outro aspecto que levava a descartar essa opção era a falta de qualquer moeda de contrapartida em troca de eventual apoio da Europa. Tal situação contrastava com o que ocorria em relação aos Estados Unidos, aos quais podíamos oferecer nosso concurso junto aos demais latino-americanos em favor da política hemisférica ianque.

Se não havia verdadeira alternativa européia, com mais razão pode-se dizer o mesmo no que tange aos países latino-americanos, desprovidos de poder e, naquele tempo, incomparavelmente mais divididos e problemáticos do que hoje em termos de estabilidade ou capacidade diplomática. O Brasil mantinha então contenciosos de fronteiras com a maioria deles ou acabara apenas de sair de episódios traumáticos como a questão do Acre com a Bolívia, cujos desdobramentos com o Peru continuavam pendentes e provocariam crises de sérias proporções.

A rivalidade com a Argentina, tenaz e intensa, tendia a agudizar-se devido ao problema da modernização da Marinha brasileira e provocaria o grave incidente do telegrama n° 9, entre Rio Branco e o chanceler argentino Estanislao Zeballos. Se a aspiração brasileira ao Conselho de Segurança da ONU ainda aguça ciúmes argentinos e mexicanos, imagine-se o que seria quando eram muito mais vivos os preconceitos e ressentimentos herdados de passado de conflitos e intervenções!

Nabuco esforçou-se sempre por evitar situações em que o Brasil tivesse de escolher entre os Estados Unidos e a América Latina. Na teoria e na prática, buscou as melhores relações com uns e outros. Pouco antes de morrer, sua última contribuição diplomática foi o papel decisivo que desempenhou para afastar a ruptura americano-chilena no caso Alsop. Se fosse vivo, compreenderia melhor que ninguém a insensatez de querer fazer a América Latina escolher entre o Brasil e os Estados Unidos.

Desses últimos, não nos separava nenhum conflito de interesses. Não tínhamos problemas territoriais nem de outra natureza, as relações econômicas eram florescentes, contáramos com a ativa simpatia norte-americana nos diversos incidentes com europeus. Na arbitragem sobre Palmas, o presidente Cleveland dera completo ganho de causa ao Brasil e a seu advogado, o barão do Rio Branco. As ações truculentas dos ianques se exerciam de preferência no Caribe e na América Central — Cuba, Haiti, República Dominicana, Panamá — ou no contíguo México. Estávamos longe, não precisávamos temer os americanos já que não eram eles e sim os franceses e ingleses os que poderiam ameaçar-nos no Amapá, em Roraima e no Amazonas. É de surpreender, nessas condições, que a opção norte-americana parecesse óbvia a Rio Branco e a Nabuco?

Um dos ingredientes constantes dessa convicção foi a importância das relações econômicas, de início concentradas no comércio. Com os anos elas se expandiram a outros domínios, à medida que os capitais americanos substituíram nos empréstimos e nos investimentos na indústria os ingleses, voltados de preferência às estradas, aos portos e serviços públicos.

Para ficar apenas no comércio, pouca gente hoje se dá conta de que, em 1905-1906, o Brasil era o sexto maior parceiro no intercâmbio total dos EUA com o mundo, vindo logo após a Grã-Bretanha, a Alemanha, a França, o Canadá e Cuba. Em termos de fornecedores, já fomos os terceiros maiores, nos bons tempos em que não se sonhava com a China, o Japão e demais asiáticos que viriam a dominar o mercado americano…  Já em 1870, os EUA importavam do Brasil quatro vezes mais do que nos vendiam.

Perto do final de sua missão, nosso primeiro embaixador empregaria a fundo sua considerável influência no Congresso e nos círculos políticos americanos a fim de evitar a criação sobre o café de imposto em represália à taxa de exportação cobrada pelos Estados cafeeiros no Brasil. O comércio e a economia não deixam dúvidas sobre a existência de sólida base material que precedeu de décadas o deslocamento do eixo diplomático.

Na defesa dessa opção, se destacam nitidamente as diferenças de temperamento e caráter entre as duas figuras dominantes do lado brasileiro. A personalidade de Nabuco era mais fortemente impregnada de poesia e sentimento religioso que a do Barão. Sua natureza generosa e romântica transbordava em eventuais excessos de ênfase ou de confiança. Esse “defeito de suas qualidades” não lhe diminuía, entretanto, o agudo senso das realidades, inclusive das comerciais, tampouco lhe embotando a sensibilidade para os aspectos reprováveis da diplomacia e da sociedade americanas.

A lucidez de suas observações críticas coexistia, porém, com o realismo, que o levava a anotar, em 4 de setembro de 1907, a propósito da reação anti-ianque despertada no Brasil pela conferência da Haia: “Derrotar os Estados Unidos é uma glória néscia para qualquer nação. Deus queira que haja prudência na nossa imprensa, clarividência entre os nossos homens públicos. Há muita coisa que nos irrita, melindra e aborrece por parte dos Estados Unidos, mas devemos compreender que a nossa única política externa é conquistar-lhes a amizade. Não há nenhum país ao qual seja mais perigoso dar alfinetadas, mesmo as de imprensa” (Diários, Vol.2, p. 409). É perfeitamente admissível criticar a timidez ou excessiva prudência desses juízos; o que não se pode é atribuir a idealismo romântico o que era ditado pelo realismo do cálculo.

Em matéria de calculismo ou, se quiserem, de realismo pragmático, o Barão não lhe ficava atrás, como expressam, quase com brutalidade, trechos como este: “A tão falada liga das Repúblicas hispano-americanas para fazer frente aos Estados Unidos é pensamento irrealizável, pela impossibilidade de acordo entre povos em geral separados uns dos outros, e é até ridículo, dada a conhecida fraqueza e falta de recursos de quase todos eles. Não há de ser com uma política de alfinetadas, tornando-nos desagradáveis aos Estados Unidos como desejariam os impotentes inimigos que eles contam aqui e em quase toda a América Espanhola que poderemos inutilizar em Washington os esforços dos nossos contendores.”

Apesar de diferenças ocasionais, vê-se que, no fundamental, Rio Branco e Nabuco estavam em perfeita sintonia. O arrebatamento e entusiasmo de Nabuco, a natural tendência de quase todo embaixador de valorizar exclusivamente seu posto generalizaram a percepção de que, em contraste com o realismo do Barão, ele foi exagerado e ingênuo na defesa da aproximação com os Estados Unidos.

A impressão se deve, ao menos em parte, à diferença das posições ocupadas pelo chanceler, com responsabilidades mais universais e o embaixador, sujeito à limitação de sua área de visão. No episódio da Conferência da Haia, primeira decepção brasileira com a falta de reciprocidade de Washington à ilusão das relações especiais, Rio Branco dividiu com Rui Barbosa os aplausos do público brasileiro como co-autor da postura de resistência na conferência, enquanto Nabuco teve de limitar sua reação ao segredo dos Diários.

A política americana, como a chamava Nabuco, foi, portanto, quase tanto obra sua quanto de Rio Branco. Tudo indica que o primeiro enxergou certos aspectos e deu expressão a determinadas conseqüências dessa política de forma mais consciente e nítida até que o último. Decorridos mais de cem anos da sua introdução, ela perdeu o viço original e passou a ser gradualmente superada pelas mudanças do tempo, não sendo este o lugar para descrever as vicissitudes pelas quais haveria de passar, no futuro, o paradigma que se encontrava em estado de elaboração entre 1905 e 1910. Resta a dizer apenas que, no essencial, ele deu certo e acabou por ser vítima de excesso de êxito, posto que os sucessores tenderam a tomar como perene e imutável o que pertencia ao domínio da historicidade. Essa, porém, é outra história.

A nossa começa e termina com Joaquim Nabuco embaixador. Além de conceituador, de pensador capaz de fundar uma diplomacia nova, ele foi dos raros, raríssimos, que soube aliar à força do pensamento as qualidades de execução e desempenho inseparáveis do agente diplomático. Dos seus sucessores, só Oswaldo Aranha chegou perto na capacidade de somar à influência em alto nível na capital americana a força política própria junto aos meios dirigentes brasileiros.

Homem completo até na beleza e na prestança físicas, na perfeição, elegância e encanto com que se distinguia mesmo nas futilidades da vida diplomática, o incomparável Nabuco foi não só o primeiro, mas o maior de todos os nossos embaixadores. Dele se poderia dizer o que escreveu Federico Garcia Lorca a respeito de Ignacio Sanchez Mejia: “Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace / un andaluz tan claro, tan rico de aventura”.

Na homenagem do Cassino Fluminense, Nabuco deixa transparecer como ele mesmo se dava conta de que a obra diplomática não se situava no mesmo patamar das causas transformadoras de que foi promotor. Reconhecia, como mencionado antes, que a aproximação com os Estados Unidos e o Pan-Americanismo tinham vindo preencher um vácuo na sua existência. Afirmava, porém, logo em seguida: “Posso dizer que a minha vida, dentro da esfera que me tracei, está concluída. Ao entrar na vida pública, propus-me como programa a Abolição, a Federação, e tudo isso está realizado”.

Concluía com uma nota profética sobre o futuro: “Não me resta hoje mais do que acompanhar com a maior sinceridade, com o maior interesse, com a maior paixão, posso dizer, os novos destinos do país […] destinado a alcançar proporções de que talvez os que hoje vivem não podem ter a última idéia”.