Sessão comemorativa dos 250 anos do nascimento de José Bonifácio de Andrada e Silva
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 27 de novembro de 2013.

Não é por ter sido o primeiro ministro de Estrangeiros que José Bonifácio merece reconhecimento como o criador da diplomacia e da política exterior do Brasil. Ser o primeiro pode não significar grande coisa. A passagem de Quintino Bocaiuva pelo Governo Provisório da República, por exemplo, não deixou mais que a lembrança do malogrado acordo para dividir com a Argentina o território contestado de Palmas.

O caso de José Bonifácio é diferente e único. Nos tumultuados primórdios da independência, foi ele o primeiro em tudo, ou quase tudo. Primeiro brasileiro a ser nomeado ministro, primeiro ministro do Reino e dos Estrangeiros, presidente do conselho de ministros por delegação do Príncipe Regente, chefiou, na prática, o governo como primeiro ministro, cargo que não existia formalmente.

Coube-lhe tomar as decisões fundamentais que plasmariam o caráter monárquico, liberal e centralizador do Estado que se fundava. Escolheu o general Labatut para comandar o exército que submeteria a Bahia; contratou Cochrane para organizar a marinha que garantiria a unidade do território contra a tendência ao desgarramento das províncias do Norte.

Em resumo, ao lado do príncipe de 23 anos, detentor da legitimidade dinástica e do domínio dos meios de coerção, a nenhum outro se deveu mais que a ele a independência e a forma pela qual se realizou. Não admira assim que, tendo feito a independência, subestimasse a importância do seu reconhecimento internacional, considerando-o questão de tempo.

Nem por isso deixou de tomar as providências necessárias para formalizá-lo. Redigiu o Manifesto aos Governos e Nações Amigas de 6 de agosto de 1822. Meses antes, estabelecera o esboço da maquinaria diplomática ao desentranhar dos da Guerra os Negócios Estrangeiros. Aparelhou a separada Secretaria de Estado com seus primeiros quatro Oficiais assistidos por dois ajudantes de porteiro, semente minúscula da portentosa estrutura do Itamaraty de nossos dias.

Designou Caldeira Brant para negociar o reconhecimento em Londres e Gameira Pessoa em Paris; nos Estados Unidos aproveitou os serviços do revolucionário pernambucano de 1817, Gonçalves da Cruz, o Cabugá e despachou para Buenos Aires Correia da Câmara.

Por meio de seus emissários nesses países ou em conversações diretas com os representantes de potências estrangeiras no Rio de Janeiro, conduziu as tratativas iniciais sobre o reconhecimento. Sendo a independência um fato consumado, entendia que os próprios interesses comerciais externos se encarregariam de promover-lhe a aceitação formal.

Não via razões para pagar com concessões exorbitantes o que lhe parecia de interesse recíproco. Quando se deu conta da atitude dilatória de Canning, determinou a Caldeira Brant que se retirasse de Londres em abril de 1823, suspendendo as negociações. Em julho, poucos meses depois, sem ter podido retomá-las, deixava o poder para nunca mais voltar.

Durou pouco seu governo: dezoito meses, um ano e meio, menos da metade do mandato presidencial de hoje. Mas não é a duração e sim a qualidade e a importância da obra que contam. A obra naquela hora decisiva era uma só, a de ser ou não ser o sujeito do próprio destino, questão única bem resumida no grito do Ipiranga: “Independência ou morte!”.

Nesse desafio, condição de tudo o mais, alcançou perfeito êxito. Sua missão consistia em conquistar a autonomia ao menor custo possível em violência e destruição, manter a unidade e não perder o controle do processo em favor de grupos menos alinhados a esses objetivos. Ao findarem dezoito meses, tudo isso era realidade.

Ao dar certo em pouco tempo, sua estratégia de independência criou-lhe um problema inesperado. Melhor que em vernáculo, há uma frase inglesa que define a situação em que se encontrou devido ao excesso de êxito. Ele havia “outlived his usufulness”, isto é, tinha sobrevivido ao instante em que fora não só útil, indispensável talvez. A partir de então, afastados os piores perigos, não era mais necessário e passavam a prevalecer na mente do Imperador preocupações diferentes, que o Patriarca não partilhava.

Quem melhor explicou a maneira como se encaminhou então o reconhecimento foi C. K. Webster na introdução que redigiu para Britain and the Independence of Latin America, 1812-1830. Afirmava Webster que após o afastamento do Andrada, Pedro tomou largamente a negociação em suas próprias mãos, dirigindo-as com “astúcia, charlatanismo e coragem característicos”.

Seu objetivo era “preservar a posição da Casa de Bragança em ambos os hemisférios e seu próprio predomínio nas decisões régias” (quer dizer de d. João, a essa altura restituído ao poder absoluto). Para tanto, prossegue Webster, o reconhecimento por Portugal lhe era essencial e “isso ele somente poderia obter por meio da influência britânica. Ele tinha, portanto, que aceitar a interferência da Grã-Bretanha […]”.  

Ao descrever a crescente tensão política entre brasileiros e lusitanos na antevéspera da dissolução da Assembleia Geral, Octávio Tarquínio de Sousa deduz que “começara a produzir suas más consequências o equívoco da fase final da independência, isto é, a emancipação feita à sombra do trono de um príncipe nascido em Portugal e cercado de portugueses”.

Lançada assim no meio da narrativa, sem maior elaboração, a observação surpreende, choca até. Pois não era essa a vantagem da independência brasileira? Não tinha sido o príncipe que nos poupara a ruptura de legitimidade da América Espanhola com seus efeitos de guerra encarniçada e fragmentação funesta? Não se devia a esse motivo utilitário e pragmático a adesão de José Bonifácio e dos dirigentes brasileiros à monarquia?

Se isso é verdade, por que então chamar de equívoco o que mereceria talvez outra palavra, paradoxo, ou melhor, dilema? De fato, uma situação com duas saídas, nenhuma delas satisfatória, é o que o dicionário define como dilema.

Fazer a independência com o príncipe minimizava a crise de legitimidade e facilitava preservar a unidade dos Brasis, como se dizia na época. Atrativa, a solução tinha preço: o de aceitar tudo o mais que d. Pedro traria consigo em termos de implicações dinásticas e de inclinação ao poder pessoal.

A alternativa, mais perigosa, teria sido a ruptura radical com Portugal, inclusive a herança monárquica, a revolução pura e dura. A opção também tinha custo e possivelmente mais dispendioso: a provável exacerbação da luta e suas sequelas propícias ao esfacelamento do território.

O que não se podia era ter, ao mesmo tempo, o melhor de dois mundos, escolher de cada abordagem apenas o bom e rejeitar o menos conveniente, desejar os benefícios da legitimidade monárquica sem os ônus dos interesses dinásticos que a acompanhavam. Aclamado imperador e com a realidade do poder nas mãos, Pedro não abriria mão de “preservar a posição da Casa de Bragança em ambos os hemisférios”, como se esforçou por fazer até o fim, inclusive na hora da abdicação.

Precisava, portanto, do reconhecimento de Portugal e este passava pela intermediação inglesa. Estava armada a equação do único tipo de reconhecimento compatível com tais constrangimentos. Incompatível pela mesma razão com a fórmula igualitária, sem concessões, desejada pelo Patriarca, a modalidade de que o Imperador necessitava foi a que prevaleceu dois anos mais tarde.

Exemplo insólito entre todos os reconhecimentos do continente, a negociação não se cumpriu diretamente entre as duas partes interessadas. Teve de passar pela Inglaterra, que representou Portugal, antes de negociar em seu próprio nome. A ausência no tratado de renúncia expressa ao trono português deixava aberta a possibilidade de futura reunificação das duas metades da coroa bifronte. Adicionalmente, cedia-se, nas palavras de Oliveira Lima, à “vaidade senil” de d. João, obcecado em se apropriar do título de Imperador do Brasil para transmiti-lo ao filho de livre vontade.

Concordava-se em pagar dois milhões de esterlinas, metade da dívida contraída pela antiga metrópole para combater a independência. É igualmente de Oliveira Lima o juízo condenatório: “A compra da independência por dois milhões de esterlinos, depois de ela ser um fato consumado e irrevogável, foi um estigma de que a monarquia justa ou injustamente nunca pôde livrar-se no Brasil e cuja recordação pairou sobre o trono até os seus últimos dias”.

Faltava ainda a fatura que a Inglaterra cobraria pelos seus serviços. Dessa conta, a recondução dos privilégios comerciais de 1810 não constituía a parcela maior e chegou a ser oferecida como aliciante por José Bonifácio no início das tratativas. O problema residia na abolição do tráfico, condição absoluta requerida pela Grã-Bretanha de todas as ex-colônias.

Aqui também o preço foi pago integralmente, ou melhor, o Imperador prometeu pagá-lo a partir de 13 de março de 1830, quando o tratado com a Inglaterra determinava que cessaria o tráfico. Ao abdicar um ano depois, o nefando comércio de seres humanos florescia como nunca e duraria quase vinte anos ainda.

A fim de quitar o preço do reconhecimento, Pedro violentou frontalmente os interesses e sentimentos das facções políticas majoritárias e dos setores sociais que as sustentavam. Desconhecer desse modo a resistência quase unânime das camadas dominantes só seria possível com a deriva para um regime autocrático, consequência política inelutável do reconhecimento.

Embora o Patriarca exilado tivesse mitigado a reação ao tratado do reconhecimento, não deixou de comentar: “… a soberania nacional recebeu um coice na boca do estômago, de que não sei se morrerá, ou se restabelecerá com o tempo”. Com pressentimento análogo, Canning se regozijava por ter reconciliado o Brasil com Portugal, mas acrescentava de modo ominoso: “O futuro que o imperador está preparando para si próprio é outra história”.

O reconhecimento representou o mais árduo desafio internacional com que se defrontou o país recém-independente. A maneira pela qual se negociou acabou por agravar o problema do tráfico, que teria de ser enfrentado de qualquer forma e dominaria as relações externas nas duas décadas seguintes. Esses dois problemas diplomáticos, juntamente com a derrota na guerra e a perda da Cisplatina concorreram sensivelmente para a queda final do Imperador.

A específica complexidade do desafio do reconhecimento, o verdadeiro excepcionalismo do Brasil a esse respeito, não procedia somente do que sempre se repete: o traslado da família real, o processo evolutivo, a guerra breve e limitada, a preservação da unidade, da monarquia e da legitimidade dinástica.

Tudo isso deveria logicamente ter contribuído para que o reconhecimento da independência do Brasil fosse o primeiro da América Latina, quando na verdade terminou por ser o último. Ao ponto de que o embaixador inglês em Lisboa considerou a ratificação do tratado do reconhecimento por d. João em novembro de 1825 como “o selo final da emancipação total da América”.  A explicação do paradoxo decorre de aspecto que os historiadores brasileiros raramente ou nunca mencionam: a diferença fundamental entre o reconhecimento de uma ex-colônia de Portugal em relação ao das antigas possessões da Espanha.

O quixotesco sonho espanhol da reconquista desapareceu apenas com a morte de Fernando VII, abrindo caminho para o reconhecimento do México em fins de 1836, seguindo-se um a um os demais até os derradeiros na década de 1880, entre eles o da Colômbia quase na época da proclamação da República no Brasil!

A Inglaterra não teria motivos para aguardar tanto, sobretudo depois que a intervenção do exército francês dos “cem mil filhos de São Luís” promoveu na Espanha a “segunda restauração do absolutismo” sob a renovada hegemonia da França e com as bênçãos da Santa Aliança.

Foi nesse momento que Canning fez no Parlamento sua arrogante declaração: “Eu decidi que se a França tivesse a Espanha, não seria a Espanha com as Índias. Eu dei vida ao Novo Mundo para restabelecer o equilíbrio do Velho”.

Diferia por completo a situação do Brasil, único caso de colônia de Portugal, velho aliado e protegido da Grã-Bretanha. Em tese, a guerra da independência poderia enquadrar-se entre as hipóteses previstas na aliança para o socorro militar dos britânicos.

A eventualidade não chegou a ser tomada a sério, mas Canning a manipulou de acordo com suas conveniências. Ora ameaçava que, em estado de guerra e sem o reconhecimento português, o Brasil poderia ter contra si a frota inglesa. Ora, instava Lisboa a reconhecer a ex-colônia como país estrangeiro a fim de ter condições de proteger o reino contra eventual ataque brasileiro…

No fundo, os interesses da Inglaterra, comerciais e contra o tráfico, prevaleceram todo o tempo. Canning insinuou mais de uma vez que não teria hesitado em agir sozinho, caso fosse absolutamente necessário. Na ausência de situação extrema, preferia levar consigo Portugal, como afinal ocorreu.

Nenhum contemporâneo provavelmente percebeu todas as complexidades diplomáticas do reconhecimento. José Bonifácio, porém, compreendeu o mais importante: que a situação estratégica e comercial do Brasil contrastava com a de Portugal em aspectos fundamentais, tornando desnecessária a proteção inglesa e o preço que acarretava.

Já em 1810, Hipólito José da Costa demonstrava nas páginas do Correio Braziliense que, do outro lado do Atlântico, não participando do jogo de poder europeu, nem mantendo dependências coloniais além-mar, o Brasil dispensava a proteção da esquadra britânica, cujo papel era crucial para assegurar as comunicações do reino metropolitano com suas possessões. Tampouco se aplicava ao comércio exterior brasileiro a complementaridade com a Inglaterra que, no caso português, se transformara no clássico exemplo de David Ricardo para ilustrar as vantagens comparativas do comércio internacional.

O que Hipólito escrevia em 1810 se tornara muito mais evidente em 1825. Não havia mais tropas portuguesas no Brasil, a guerra terminara, o país não sofria ameaça de ataque, seu governo não precisava mendigar subsídios britânicos como sucedera como d. João no exílio.

Por que então precisaria a jovem nação pagar preço tão alto à Grã-Bretanha? A resposta é óbvia: não existiam razões de interesse nacional para isso; sobravam, contudo, os motivos de interesse pessoal e dinástico do imperador.

Debaixo da aparência superficial de uma divisão de facções resultante do nascimento no Brasil ou em Portugal, a oposição não era tanto essa, segundo discerniu argutamente a Professora Lúcia Bastos Pereira das Neves.

O desencontro se dava, na realidade, entre duas concepções antagônicas do poder político, a mais liberal, herdeira da Revolução Francesa na crença de que a soberania, originária do povo, residia nos representantes da nação e a remanescente do Antigo Regime, no peso conferido à legitimidade dinástica, na tentativa do impossível compromisso da fórmula de imperador constitucional “pela graça de Deus e unânime aclamação dos povos”.

Esse choque de concepções se converteu, como observou a Professora Lúcia Bastos, ou se disfarçou, diriam outros, em rivalidade entre brasileiros e portugueses. O mérito do Patriarca traduziu-se na defesa do que constituía o interesse nacional permanente, contra o resquício da situação anterior, predominante naquele instante, mas condenado a desaparecer. Sacrificando, embora, a carreira política e a liberdade, não tardou em ver seu julgamento confirmado pelos fatos, primeiro na abdicação, seguida da revogação sistemática da política exterior de d. Pedro e seus auxiliares.

Depois de comparar o paralelo entre o estabelecimento da predominância inglesa em Portugal e sua transferência ao Brasil, Alan K. Manchester constatava: “Aqui, porém, cessa o paralelo: enquanto, no século XVIII, a Inglaterra expandiu essas vantagens até que Portugal se tornou praticamente um vassalo econômico e político, o Brasil do século XIX resistiu aos esforços similares de maneira tão vigorosa que, por vota de 1845, os favores especiais outorgados à Inglaterra haviam sido revogados, o tratado comercial e o relativo ao tráfico de escravos tinham sido declarado nulos e a corte do Rio se encontrava em franca revolta contra a pressão exercida pelo Foreign Office de Londres”.

A superioridade de José Bonifácio sobre os contemporâneos se manifestava com frequência em posições adiantadas para o tempo. Sua proposta a Buenos Aires de uma aliança defensiva contra as potências europeias, a ideia de uma grande Liga ou Federação Americana com liberdade de comércio, a sondagem aos Estados Unidos de uma aliança das Américas para proteção contra os europeus, prenunciavam políticas audaciosas que só reapareceriam quase um século mais tarde.

Pertencem ao mesmo gênero de antecipações do futuro as propostas do Patriarca para o país: abolição do tráfico e supressão gradual da escravidão; integração dos indígenas à comunidade nacional; educação universal; mudança da Capital; desenvolvimento da mineração, da metalurgia e da indústria; reforma agrária; fomento da economia pelo crédito do Banco do Brasil.

É significativo da atualidade do pensamento andradino que hoje o renascimento do interesse por José Bonifácio se origina não do muito que fez, mas do seu projeto de Brasil, “daquilo que podia ter sido e que não foi”.

Tive o privilégio de assistir à última e inesquecível conferência em Paris de José Guilherme Merquior, dias antes de morrer. Convidado a fazer um balanço de mais de um século de história, José Guilherme preferiu esboçar não a narrativa dos fatos e sim a descrição dos projetos que os brasileiros de diferentes gerações conceberam para o país. Começava com o projeto de José Bonifácio, que lamentava ter sido sacrificado em favor do que chamava de “projeto liberal oligárquico e escravagista”.

Pode-se argumentar que inexistiam, como diriam os marxistas, as condições objetivas e subjetivas para a execução do projeto Andrada. Ele refletiria quando muito o Brasil ideal, em contraposição ao Brasil real dos fazendeiros e escravocratas. Não obstante, se o projeto andradino ainda está vivo, não é porque fosse inadequado ou irrealizável. Sua permanência denuncia a profunda afinidade que o faz brotar das mais genuínas aspirações da nacionalidade.

Benjamin Franklin foi chamado de “o primeiro americano”, em parte por ser o mais idoso dos fundadores da república americana, e, acima de tudo porque era entre todos eles o mais representativo em caráter e origem do norte-americano médio. Sem forçar a nota, José Bonifácio tem tudo para ser visto como o “primeiro brasileiro”, até como testemunhou Eschwege, na capacidade de dançar magistralmente o lundu africano.

No dia em que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro recorda seu nascimento 250 anos atrás na antiga Vila do Porto de Santos, a maior homenagem que lhe podemos prestar é reconhecer que o sonho de Brasil que sonhou ainda se encontra longe de sua plena realização. Muito obrigado.

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