Aula inaugural no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP)
17 de fevereiro de 2020
Rubens Ricupero
Quase exatamente um ano atrás, em 25 de fevereiro de 2019, fiz na Casa das Garças, no Rio de Janeiro, uma palestra sobre a política externa do então recém-inaugurado governo Bolsonaro. A fim de retornar ao tema, partirei, como naquela ocasião, da constatação de que toda e qualquer política externa deve ser examinada à luz de dois critérios principais.
O primeiro consiste em indagar se ela é capaz de captar corretamente as características do sistema internacional dentro do qual terá de atuar. O segundo é verificar se a diplomacia reflete um projeto, uma ideia de país que possa tanto influir sobre as mudanças mundiais, quanto de obter do contexto externo condições favoráveis à realização dos objetivos do seu povo.
A História Diplomática ajuda a compreender como esses critérios se materializam na prática. No princípio do século XX, o barão do Rio Branco cedo percebeu as implicações da ascensão dos Estados Unidos e sua transformação na primeira grande potência mundial surgida nas Américas. Dessa correta percepção, soube extrair uma política externa cujos resultados efetivos a consagraram como paradigma diplomático incontornável até o começo dos anos 1960.
Tendo em mente esse precedente e outros, como a acertada decisão de participar da Segunda Guerra Mundial ao lado dos EUA e seus aliados, cabe-nos investigar se continuamos a demonstrar a mesma capacidade de interpretar os sinais dos tempos. Comecemos por examinar com atenção o que se passa ao redor de nós.
Existe praticamente um consenso de todos os analistas qualificados, dos realistas do poder da família intelectual de Kissinger aos idealistas partidários da noção de ordem mundial liberal como John Ikenberry. O sistema internacional criado 75 anos atrás, na esteira da reorganização do mundo após a Segunda Guerra Mundial, está sofrendo crescente erosão nos seus fundamentos e funcionamento. Gradualmente, assiste-se ao abandono da meta de construir e aperfeiçoar um sistema baseado em normas e na busca de soluções coletivas e consensuais para os grandes desafios.
No vazio formado pela violação das regras e o enfraquecimento das instituições, afirma-se o poder unilateral dos Grandes na dimensão militar e/ou econômica. A tendência não é de agora, mas agravou-se de forma exponencial com a chegada de Trump ao poder. Três dos grandes centros de poder mundial – os EUA de Trump, a China de Xi Jinping, a Rússia de Putin – comportam-se como se não admitissem limites externos, morais ou jurídicos, a seus objetivos. A exceção, a União Europeia, não fala com voz única, encontra-se debilitada pelo Brexit, paralisada pela incerteza sobre a sucessão de Merkel, a contestação a Macron, o futuro do governo italiano.
Em contraste, a China recorre cada vez mais a meios autoritários, por vezes militares, para defender o que considera seus direitos, nas ilhas da sua proximidade, nas ameaças repetidas a Taiwan, na dificuldade em tolerar a diversidade de Hong Kong. A Rússia opera com cinismo, quase desfaçatez, na Crimeia, na Ucrânia, na Geórgia, nas invasões cibernéticas nos países bálticos. Até países médios se sentem autorizados a intervir abertamente em assuntos de nações soberanas em violação à Carta das Nações Unidas, como se pode ver da intervenção da Turquia na Síria ou da Arábia Saudita no Iêmen, entre outras.
Os atentados mais graves e frequentes provêm do governo Trump: assassinato de integrante de governo do Irã, país com o qual os EUA não se encontram em guerra; aplicação sistemática de sanções não-autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU; imposição extraterritorial da legislação norte-americana sobre sanções; recurso habitual a tarifas e cotas sem passar pelos mecanismos da Organização Mundial de Comércio (OMC); recusa de aprovação de novos juízes do Órgão de Apelação da OMC, condenando à inoperância o sistema de solução de controvérsias.
Pelas graves implicações para todos os integrantes do sistema, essa erosão da estrutura internacional das normas e do consenso é a característica mais importante e ameaçadora do momento atual. Continuando nesse rumo, a consequência inevitável será o retrocesso à situação de competição ilimitada de poder entre as potências que conduziu às duas guerras mundiais.
Na conjuntura que descrevemos, parece evidente onde se situa o interesse de um país intermediário no sistema internacional como o Brasil, que não é potência nuclear, militar convencional nem econômica. Coincidente com o da imensa maioria dos demais países, esse interesse consiste em promover uma ação coletiva de governos de convicções similares a fim de resistir às ações de enfraquecimento do sistema multilateral.
Em termos práticos, isso significa desenvolver uma política proativa de apoio à ONU, à OMC, ao Direito Internacional, tanto na esfera mundial quanto na regional. A contrario sensu, implica condenar e rejeitar com firmeza as violações de normas, os atentados contra as organizações multilaterais, as sanções unilaterais, as ameaças de uso de força militar ou econômica contra países, as atitudes de desafio às resoluções do Conselho de Segurança.
Não faz sentido que tal país apoie na Assembleia Geral da ONU sanções unilaterais contra Cuba ou qualquer outra nação, sem endosso do Conselho de Segurança. Tampouco corresponde ao interesse objetivo de país nessa situação aprovar oficialmente planos como o que o governo norte-americano pretende impor aos palestinos, contrariando reiteradas decisões da ONU e implicando anexação de território conquistado pela força.
Ao agir desse modo, o governo brasileiro torna-se cúmplice da obra de desmantelamento do sistema baseado na Carta da ONU e no Direito Internacional. Atua objetivamente contra o interesse nacional ao colaborar na destruição das condições de validade dos únicos instrumentos de poder e proteção a seu alcance. Com efeito, desprovido do hard power, o poder duro das armas ou das retaliações econômicas, o Brasil só pode aspirar a alguma projeção e prestígio internacional graças ao soft power, o poder brando da diplomacia e da negociação. Abre mão desse poder e se torna mais vulnerável quando adere à uma linha como a de Trump, que só reconhece e respeita a força.
Ao lado da erosão do sistema multilateral, a segunda característica marcante dos tempos atuais consiste na tendência à polarização em torno da disputa de poder entre os Estados Unidos e a China. Superpondo-se à proliferação de outras relações conflitivas – EUA-Rússia, EUA-Irã, Arábia Saudita-Irã etc. – ela vem adquirindo conteúdo crescente de competição estratégica pela dominação tecnológica, chave do predomínio militar, econômico e político.
Sem nenhum interesse nacional em jogo no conflito maior e nos demais, desfrutando, ao contrário, de relações de mútuo proveito com todos os países envolvidos, não se justifica que o governo brasileiro escolha como viga mestra de sua política exterior o alinhamento sistemático com o governo americano. Além das frequentes manifestações de apoio a ações dos EUA – das sanções contra Cuba, passando pela negação de abastecimento de combustível a navios mercantes do Irã, o assassinato do general iraniano até chegar ao plano sobre a Palestina – o alinhamento encontrou expressão na busca do estatuto de “aliado preferencial dos Estados Unidos fora da OTAN”.
Vendeu-se à opinião pública a versão de que o estatuto não passa de artifício inofensivo, vantajoso por facilitar compras de equipamento e tecnologia militar, sem nenhum inconveniente concreto. A realidade é bem diversa. Em relações internacionais, as palavras “aliança”, “aliado”, possuem sentido específico e não podem ser utilizadas como sinônimos de “parceria, “associação”, como no uso trivial.
Aliar-se quer dizer tomar partido, engajar-se em favor de alguém, de um país, de uma organização militar como a OTAN. Alianças, defensivas ou ofensivas, são sempre contra alguém ou algum país. Quem se alia a outros renuncia a parcela importante de sua autonomia, amarra-se solidariamente a interesses alheios, coincidentes aos seus, na defesa contra ameaças comuns. Só se faz isso raramente e apenas por motivo de proteção contra perigos que põem em risco a própria sobrevivência.
Portanto, aceitar o estatuto de aliado preferencial dos EUA implica para o governo brasileiro atrelar-se à agenda de segurança internacional de Washington, expondo-se aos perigos de retaliação dos inimigos dos americanos. Essa agenda aponta como principais adversários a China, a Rússia, o Irã, os chamados “países revisionistas”, além de uma infinidade de outros: Cuba, Venezuela, Nicarágua, entidades como a do governo palestino, o Hisbolá, o Estado Islâmico, Al Qaeda, etc.
Em cada uma dessas disputas, é fácil identificar os interesses concretos americanos, quase invariavelmente puros interesses de poder e de estreito sentido nacional, sem validade universal. Já no caso brasileiro, não só esses interesses não existem, como frequentemente nosso país teria apenas a perder em comprar brigas que não lhe dizem respeito. A posição geoestratégica do Brasil no mundo possui alguns inconvenientes, sobretudo em termos de relativo distanciamento geográfico dos centros de maior densidade econômico-comercial. Uma de suas vantagens compensatórias consiste justamente em estar longe dos focos ativos de conflitos armados e de tensões.
Sem contenciosos com seus dez vizinhos, distante das zonas “quentes” de disputa, um dos raríssimos países isentos do radicalismo fundamentalista islâmico, o Brasil não tem nenhuma razão objetiva para hostilizar nações que já constituem alguns dos maiores mercados para suas exportações: a China naturalmente, nosso primeiro parceiro comercial, mas também a Rússia, o Irã, os árabes em geral. Por outro lado, qual seria a justificativa racional de antagonizar o Hisbolá, uma das maiores forças políticas do Líbano ou os movimentos islâmicos que até agora pouparam o território brasileiro de seus atentados?
Seria imprudente subestimar a possibilidade de que a opinião pública árabe e muçulmana passe a ver o Brasil como inimigo depois da enxurrada de votos contrários aos palestinos nos órgãos da ONU em Nova York e Genebra, da insistência em anunciar a mudança da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, de ter sido o único país de alguma expressão a apoiar formalmente o plano de paz de Washington para a Palestina. Tudo isso já representa parte do pagamento pelo duvidoso privilégio de aliado preferencial.
Não se chegou ainda a pagar o “preço de sangue”, mas a cobrança não tardará se um dos conflitos latentes em que os EUA se acham envolvidos degenerar em choque militar. Lembre-se que a Argentina de Menem e das “relações carnais e abjetas” com Washington, teve de honrar sua condição de aliada preferencial enviando navios para participar da primeira Guerra do Golfo. A opinião pública brasileira não se enganou ao revelar preocupação de um envolvimento temerário de nosso governo na ocasião do assassinato do general iraniano em princípios de janeiro.
Se o alinhamento acrítico com os EUA nos causa estragos consideráveis em nossas relações com a maioria dos parceiros, podia-se ao menos esperar que, na relação bilateral, alguma vantagem econômica ou política viesse compensar o sacrifício da autonomia. Infelizmente é o oposto o que ocorre.
Desde o início do governo Bolsonaro, o governo norte-americano tem sido o único a nos aplicar sanções comerciais ilegais (as cotas de aço, o aumento unilateral de tarifas no alumínio), a nos ameaçar de punição por pecados imaginários (as ameaças relativas à desvalorização da moeda), a retirada das vantagens do estatuto de país em desenvolvimento, o não cumprimento da promessa de suspensão da possibilidade de importação de carne bovina in natura, a negociação com a China de acordo de comércio administrado cuja implementação redundará em desvio de importações de produtos agrícolas nacionais em favor de exportadores americanos.
A última da série de maus tratos está sendo a deportação de mais de 20.000 brasileiros imigrantes ilegais, após tratamento desumano de prisão em cárceres superlotados, confinamento na fronteira mexicana, transporte como criminosos algemados em longa viagem aérea. A reação a tudo isso tem sido a de não questionar as iniciativas de Washington, que o governo brasileiro busca ignorar ou minimizar.
O tratamento que Washington dispensa a seu aliado preferencial só não é pior porque desfruta conosco de um dos seus raros excedentes comerciais. Mesmo num caso como o da primeira fase do acordo Trump-China, violação do princípio de não discriminação e da cláusula da nação mais favorecida, pilares da OMC, o governo Bolsonaro olha para o outro lado ou alega, como fizeram alguns de seus ministros, que o prejuízo não será catastrófico.
Ora, esses golpes contra as exportações nacionais acontecem no momento em que a balança comercial começa a minguar, o déficit em conta corrente se aproxima dos 3% do PIB e a deterioração geral da balança de pagamentos faz acender a luz amarela em relação a nossas contas externas. A situação pode não ser grave ainda, mas somente não piorou porque até agora o anêmico crescimento da economia não pressionou a demanda de importações. O que sucederá se a aceleração, mesmo modesta, prevista neste ano, agravar o déficit corrente numa conjuntura mundial de queda do comércio (cresceu apenas 1,2% em 2019), de desaceleração da economia chinesa e internacional em decorrência da epidemia de coronavírus e da continuação da crise argentina?
Nessa quadra difícil do comércio internacional, onde encontrará o Brasil mercado para suas vendas externas? Para isso, a opção preferencial pelos EUA não serve, já que a crise competitiva estrutural da indústria brasileira não nos permite concorrer em manufaturas com países como o México, contíguos e integrados às cadeias de produção americanas há 20 anos. No agronegócio, área de concentração de nossas vantagens competitivas, os ianques são nossos maiores concorrentes em soja, milho, carnes, algodão, etanol.
O potencial existente reside, em primeiro lugar, novamente na China, que Bolsonaro tratou no início com mal disfarçada hostilidade. Posteriormente, a retificação parcial de conduta resultou não tanto da visita a Pequim do mandatário brasileiro, mas do reconhecimento pela participação simbólica de duas estatais chinesas, provavelmente devido a apelo de Brasília, no frustrado leilão de áreas petrolíferas do ano passado. Mesmo assim, não se restabeleceu plenamente a confiança, como prova a declaração do presidente de que a relação com a China será examinada “caso a caso”. Resta a ver em que condições se decidirá em breve a participação da Huawei no leilão da velocidade 5G.
Dos outros grandes mercados potenciais, os árabes vêm sendo alienados pela exagerada orientação pró-Israel e os europeus pela desastrosa linha do governo brasileiro nas questões da destruição da Amazônia, do meio ambiente em geral, dos povos e terras indígenas. O problema ambiental representa um caso exemplar da incapacidade do governo brasileiro de interpretar corretamente a realidade e de perceber com clareza qual é o interesse do seu próprio povo.
Já na fase antes da posse, a intenção de suprimir o ministério do Meio Ambiente ou transferir suas atribuições ao ministério da Agricultura sinalizava cegueira diante do maior desafio que ameaça a sobrevivência da civilização em nosso planeta. A absurda intenção beira a insensatez quando se lembra que, no primeiro ano de governo, Bolsonaro teve de enfrentar três crises ambientais maiores: a de Brumadinho, a dos incêndios na Amazônia e a do derramamento de petróleo nas costas nordestinas.
Evitou-se o desastre pior, às custas da entrega do MMA a um antiministro incumbido de desmantelar a estrutura e as políticas edificadas há décadas por meio do corte devastador de verbas, do afastamento dos quadros técnicos competentes, da nomeação de pessoas desqualificadas e inimigas dos objetivos de defesa ambiental.
A recente recriação do Conselho da Amazônia, estabelecido por mim em 1993 e a indicação do vice-presidente para chefiá-lo têm toda a aparência de mera jogada de relações públicas, uma vez que nada mudou em termos de pessoas, dotações e políticas. Mesmo as declarações do presidente continuam a refletir a mesma incompreensão e má fé.
O retrocesso em matéria de política ambiental prejudica o país ao privá-lo de seu principal patrimônio de soft power. Detentor da maior floresta tropical do mundo, da maior reserva de água doce, de um dos principais acervos de biodiversidade, de enorme riqueza de energias limpas e renováveis, o Brasil se destacava como autêntica potência ambiental. Sua atuação construtiva e conciliadora nas negociações internacionais sobre clima tornou imprescindível a participação brasileira em qualquer acordo de solução desse problema global.
Tudo isso perdeu-se ou está em vias de perder-se em consequência das ameaças renovadas de deixar o Acordo climático de Paris, do retrocesso em políticas e práticas ambientais, da sabotagem ao Fundo Amazônia criado com recursos da Noruega e da Alemanha, da hostilidade às ONGs ambientais, da demissão do diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE).
Graças aos esforços do governo Bolsonaro, o Brasil desbancou todos os rivais e converteu-se indiscutivelmente no vilão ambiental número um, num pária em relação às aspirações universais de avanço no combate ao aquecimento global, no que os americanos costumam denominar de “rogue State”, um país velhaco, bandido. Essa inversão de papeis de anjo para demônio já nos está rendendo a antipatia, o desprezo, a hostilidade latente de grande parte da opinião pública mundial cada vez mais convicta da prioridade absoluta da ameaça do aquecimento global.
O dano será incomensurável na perda dos benefícios imensos contidos nas promessas da migração para uma economia verde capaz de criar empregos e alterar a lógica da competitividade em favor dos que optarem por energias limpas. Não só o país acumulará prejuízos de prestígio, influência, recursos de fora como os do Fundo Amazônia. Estará igualmente comprometendo o futuro da própria população brasileira, uma vez que agravará as consequências inevitáveis da mudança climática, como se sabe mais fortes e precoces nos territórios tropicais já sujeitos a altas temperaturas.
Percebe-se claramente nesse caso como o grupo no poder é incapaz de captar a complexidade do mundo e de formular um projeto de país em condições de influir sobre o contexto externo e dele extrair benefícios para a realização dos objetivos nacionais. Pelo que se pode deduzir da pobreza intelectual dos documentos programáticos do governo Bolsonaro, a visão de mundo por trás de sua política externa é reducionista e empobrecedora. Simplisticamente reduz a complexidade internacional a uma teoria conspiratória do tipo que nos Estados Unidos se atribui ao “lunatic fringe”, a franja lunática do espectro ideológico.
De acordo com essa visão, estaria em curso uma conspiração para destruir as bases da civilização judaico-cristã por parte de forças obscuras, mal definidas, como o globalismo da ONU, o marxismo cultural, o catastrofismo ambiental etc. Contra essa obra de destruição se ergueriam alguns governos e movimentos de afinidades com o de Bolsonaro: os de Trump, de Israel de Netanyahu, da Hungria, da Polônia, da seita dirigida por Steve Bannon e Olavo de Carvalho. O traço unificador dos componentes dessa salada russa reside no caráter antiliberal, anticientífico, antirracional, anti herança do Iluminismo, anti modernidade.
A espessa casca de aberrações e disparates que envolve tal concepção é de uma irracionalidade manifesta. Como ilustração, basta mencionar o último anúncio de viagem ao exterior de Bolsonaro. Entre todas as possíveis prioridades da agenda mundial, o governo não encontrou melhor do que privilegiar visitas à Hungria do autocrata Victor Orban e à Polônia reacionária. Alguém ainda precisa perder tempo em alinhar argumentos racionais para demonstrar que se trata de prioridade que salta aos olhos pelo absurdo?
Enquanto isso, a prioridade das prioridades, a relação com a Argentina, nosso principal vizinho, só não azedou irremediavelmente graças ao esforço unilateral do governo de Buenos Aires, que multiplicou gestos de conciliação e boa vontade diante das repetidas e gratuitas agressões que sofreu de vários membros do governo brasileiro. A América Latina forneceria hoje o quadro ideal de oportunidade para aquilo que o Brasil jogou fora: sua capacidade de formular e articular aspirações comuns a fim de influir nas decisões mundiais e delas obter vantagens para o desenvolvimento de seus povos.
Em muitos países latino-americanos, voltou-se a questionar os modelos até agora abraçados. A insatisfação com os resultados, a busca de aperfeiçoamento para as instituições e políticas, mostram como o continente se encontra maduro para um esforço coletivo de reflexão sobre o futuro. Num momento grave como esse, o governo brasileiro prefere mediocremente atrelar-se à liderança tacanha e interesseira de Trump, a atuar como comparsa secundário nas desastradas manobras contra a Venezuela e Cuba.
Recentemente, ouvi no programa da rádio Cultura “De volta pra casa”, o apresentador Alexandre Machado comentar que, após classificar a política externa brasileira de heterodoxa, recebeu de um ouvinte a correção de que essa política não era heterodoxa e sim estapafúrdia! O comentário ilustra bem como a diplomacia brasileira caiu na boca do povo, é causa de zombaria, chacota, gozação. Teve o pior destino de qualquer política: não ser levada a sério, virar motivo de ridículo.
Mesmo os críticos mais ferrenhos nunca teriam se lembrado de usar o adjetivo estapafúrdia para estigmatizar a diplomacia de Lula, de FHC, de Sarney, de San Tiago Dantas. Em nenhum momento de nossa história, tivemos política externa tão unanimemente criticada e rejeitada. Alguns dos mais severos editoriais contra ela provêm de jornais de impecáveis credenciais conservadoras como O Estado de São Paulo e O Globo.
Pelo que transpira na imprensa, mesmo no seio do governo, ela é condenada por amplos setores, militares, econômicos, da agricultura. Esses setores se preocupam com as consequências nefastas de uma orientação irracional para a atração de investimentos, a abertura de mercados, a já difícil ratificação do acordo Mercosul-União Europeia. Dão-se conta de que, em última análise, a atitude de desafiar a consciência moral da humanidade é incompatível com o liberalismo, a adesão à OCDE, à abertura comercial, elementos indispensáveis ao êxito do projeto econômico e do próprio governo.
Uma política externa de tão elevado conteúdo de irracionalidade presta-se mal a um exame intelectual sério. No fundo, não preenche condições mínimas para merecer consideração e estudo da academia. A não ser que a abordemos, como se faz nos laboratórios de anatomia patológica, como a expressão teratológica de uma enfermidade do corpo social, como monstruosidade degenerada de cérebros insanos. Combatê-la em todas suas manifestações, demonstrar sua irracionalidade, denunciá-la com vigor, é dever de todos os que se sentem humilhados e ofendidos pela degradação da tradição diplomática brasileira e pelo imperdoável aviltamento da imagem do Brasil no mundo.