Lembrei-me da frase de Bernardo Pereira de Vasconcelos no Senado do Império quando a CNN mostrou, por ocasião da visita de Clinton à África, a cena dilacerante de uma mulher negra americana no museu da Ilha de Gorée, de onde partiram tantos navios tumbeiros, como se chamavam significativamente os barcos envolvidos no tráfico de escravos.

Com revolta e desespero, ela gritava “por quê, por quê?” A discussão no Senado em 1843 sugere uma resposta. Ex-regente do Império, fundador do Partido Conservador, Vasconcelos defendia o tráfico ao dizer que a África civilizava a América.

Quase um século depois, seu biógrafo, Octávio Tarquinio de Sousa, explica que “Vasconcelos levava o espírito conservador a extremos, pelo gosto da contradição ou porque estava ligado aos interesses da grande lavoura”. A segunda razão se aproxima mais da verdade do que a primeira. O ex-regente queria dizer simplesmente que sem o braço africano, não teria sido possível domar a “natureza bruta” e lançar as bases da organização produtiva da sociedade, da civilização material.

Em outras palavras, o que sabiam bem os contemporâneos de Vasconcelos e foi esquecido pelos brasileiros é que o país havia sido em boa parte construído pelos africanos e seus descendentes. Eles sobretudo é que haviam plantado a cana-de-açúcar e o fumo em Pernambuco e na Bahia, mineirado o ouro e os diamantes em Minas e Goiás, plantado o café no Rio e em São Paulo.

Poucos se dão conta atualmente de que a escravidão foi o requisito básico da vida “civilizada”, a condição da possibilidade de existência do Brasil. E isso não confinado apenas a uma das regiões do país (e não a destinada a predominar) como no sul dos Estados Unidos. Entre nós a escravidão foi o elemento central, decisivo no Norte e no Sul, em toda parte.

Por exemplo, quantos brasileiros sabem que recebemos perto de 3,6 milhões de africanos, cerca de 38% do total trazido à força para as três Américas? Que em 1800, dos 3,2 milhões de brasileiros, metade eram escravos? Que às vésperas da Independência, em 1818, a população brasileira era de quase 3,8 milhões, dos quais 1,9 milhão eram cativos e 526 mil, mulatos ou negros livres?

Ao contrário do quadro quase idílico evocado por Gilberto Freyre, a vida da maioria dos cativos na lavoura era curta e brutal. Nos séculos 17 e 18, a expectativa de vida de muitos era de sete anos apenas de trabalho. O desespero levava alguns escravos a se deixar morrer de fome, o “banzo” ou suicídio lento. Em 1865, em Sergipe, quatro entre cinco suicídios eram de escravos. No Rio, a proporção em 1866 era de 16 em 23; na Bahia, em 1848, de 28 em 33. Como escreveu Nabuco, o regime da escravidão, por natureza bárbaro, era como um estado de sítio permanente para a escravatura, porque só pelo rigor se podia manter a submissão de grandes massas de homens ao poder absoluto de uma só pessoa, o senhor “isolado, indolente”.

Os norte-americanos, cuja dívida com a África é certamente menor do que a nossa, ao menos a reconheceram explicitamente e o presidente Clinton, em nome da nação, pediu perdão pelo mal histórico cometido. Em relação à sua população negra, o governo dos EUA pratica há 30 anos a “ação afirmativa”, as cotas e preferências a fim de corrigir, por meio de um tratamento preferencial, uma injustiça de séculos.

E nós, o que fizemos para redimir essa dívida? Menos que nada, pois são os negros e mestiços que continuam a formar a imensa maioria dos pobres e miseráveis, os marginalizados, os excluídos da educação, os meninos de rua massacrados. Por que não pôr de lado em definitivo o mito da democracia racial, a hipocrisia de uma igualdade jurídica que serve apenas para perpetuar a desigualdade de fato? Por que não aceitar como nação que temos uma dívida incomensurável para com os descendentes dos que foram trazidos para cá contra a vontade? Se é impossível pagar essa dívida em termos pecuniários, pode-se entretanto tentar abatê-la mediante fórmulas inventivas como a generalização das bolsas-escola, a fim de permitir às crianças o acesso à educação, até a universidade, a uma relativa equalização de oportunidades. Só assim poderemos esperar reverter uma situação que não só não melhora como se agrava. Pois a verdade é que no fim do Império e começo da República os negros e mestiços estavam muito mais presentes nos gabinetes ministeriais, no Parlamento, na cultura, do que em nossos dias. Foi a época em que Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza conseguiam superar pelo gênio as barreiras do nascimento, quando um menino de dez anos era vendido na Bahia como escravo pelo próprio pai, arruinado no jogo.

Muitos anos depois, em carta que deveria hoje ser lida nas escolas, o antigo menino contava a um amigo o que havia sido sua vida de luta. Roberto Schwarz, que redescobriu o documento há dez anos, destaca justamente como “soberba” a apresentação que nela faz do seu começo: “Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. O menino cresceu e se fez homem, aprendeu direito, foi rábula, sofreu perseguição por “promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente (…) alforrias de escravos”, pois, como escrevia, “detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis”. Luiz Gama foi o autor da carta, um dos que mais contribuíram para civilizar o Brasil. Assim ele se define no fim da carta autobiográfica: “…saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/03/1998.