A última vez em que eu havia viajado aos EUA tinha sido para a malfadada reunião de Seattle. Voltei esta semana para reuniões no Banco Mundial e encontrei quase situação parecida. O aparato policial, os cordões de segurança eram tais que por pouco desisti de entrar no prédio do Bird e no do Fundo Monetário Internacional. A razão é a mesma: os protestos e manifestações contra a reunião do FMI e do Bird, vistos como promotores e símbolos da globalização econômica.

Os colegas das duas instituições estão perplexos. Tentaram dialogar, sobretudo os do Bird, mas os opositores não estão interessados em conversa. Meus amigos não compreendem como possa haver clima para essa radicalização no momento em que o país vive fase sem precedentes de prosperidade.

As explicações que me deram resumem-se a duas palavras: insegurança e desigualdade. Poucas semanas antes, tinham-se reunido em Washington sindicalistas de 20 países para coordenar campanha contra a estratégia de globalização de uma das maiores transnacionais americanas, a General Electric.

Queixam-se de que basta os trabalhadores pressionarem em algum lugar por aumento para que a empresa ameace se mudar para país mais dócil. No ano passado, os operários de uma de suas fábricas na Hungria reclamaram contra o salário de apenas US$ 2 por hora. A companhia imediatamente advertiu que, se insistissem, transferiria os empregos para a Índia. O principal executivo da firma é autor desta pérola: “O ideal seria que toda fábrica fosse construída em cima de um barco”, a fim de partir, a qualquer momento, subentende-se, em busca de salários e impostos mais baixos.

Esse mesmo executivo recebeu, no ano passado, US$ 164 milhões em salários e outros benefícios (quanto daria por hora?). É verdade que, graças a ele, a empresa foi a primeira na história dos EUA a ter lucro anual de mais de US$ 10 bilhões (com ativos de US$ 400 bilhões e vendas de US$ 110 bilhões em mais de cem países).

É diante desses Godzilas do mundo empresarial, dinossauros que crescem sem parar ao engolir outros paquidermes, que as pessoas se sentem indefesas, ameaçadas de perder o controle sobre as próprias vidas. Aumenta a percepção de que o capitalismo americano e mundial atingiu uma daquelas fases cíclicas em que se impõe um esforço sistemático de novas regulações, de instituições e leis capazes de limitar-lhes o poder e conter-lhes os excessos.

Como aconteceu, por exemplo, na década de 1890 e nos primeiros anos do século 20, época de explosão econômica, mas também de frequentes estouros bancários, dos “robber barons”, os “barões salteadores”, grandes capitães bandidos da indústria e finanças, os imensos trustes, precursores das fusões e da concentração de hoje. Pouco a pouco, isso iria gerar a reação política conhecida nos EUA como o movimento populista, que não chegou ao poder, mas desencadeou a tendência reformista de que sairia o capitalismo americano do século 20. Foram etapas dessa tendência a criação do Federal Reserve, para acabar com a anarquia financeira, e o Sherman Act, a lei antitruste que conduziria ao desmembramento da Standard Oil, precedente lembrado no caso da Microsoft.

Eis como o presidente Theodore Roosevelt definia o problema em palavras sugestivamente evocadoras do momento atual: “A pujança dos poderosos senhores feudais da indústria aumentou a passos de gigante… enquanto os métodos de controlá-los por meio do governo permaneceram arcaicos e, portanto, na prática impotentes”.

O reformismo do presidente não era isento das ambiguidades e hesitações dos líderes da Terceira Via, como se pode ver dessa descrição de uma das melhores histórias dos EUA: “Ele tentou equilibrar cuidadosamente o seu caminho entre o ‘laissez-faire’ e o socialismo, diferencial entre consórcios e monopólios, e distinguir entre o uso e o abuso das grandes empresas”. Há cem anos, em 1902, o próprio Teddy Roosevelt usava um discurso que poderia quase ser posto na boca de um dos dirigentes de agora: “Temos de proceder por evolução, e não por revolução ao lidar com os trustes… nossa meta não é acabar com as grandes empresas; ao contrário, esses imensos conglomerados são um inevitável desenvolvimento da industrialização moderna… Nada de bom poderá ser feito em termos de regular e supervisar essas grandes companhias enquanto não se definir claramente que não se quer acabar com elas, mas simplesmente livrá-las dos seus aspectos negativos. Não somos hostis a elas; estamos apenas determinados a tratá-las de modo a que elas sirvam ao bem comum”.

Essa atitude de quem está empoleirado em cima do muro, que não deixa de apresentar igualmente alguma semelhança com práticas atuais, tampouco escapou a um dos humoristas da época, mr. Dooley, que assim parodiava as perorações presidenciais: “Os trustes são monstros hediondos criados pelo esclarecido espírito de iniciativa dos homens, que tanto fizeram para avançar o progresso em nossa querida pátria. Por um lado, eu gostaria de pulverizá-los sob os pés; por outro lado, não tão depressa”.

Ontem e hoje, o reformismo tem um ar de família, uma cara parecida, nas indefinições e na difícil tentativa de ficar bem com todo o mundo. Comparado aos desígnios exaltantes, mas perigosos, às vezes catastróficos, da revolução, o reformismo talvez não tenha mesmo como escapar de uma irredutível banalidade no sentido de propor coisas mais vulgares e corriqueiras, por conseguinte insatisfatórias. Desde, porém, que sejam exequíveis e contribuam a tornar melhor a vida das pessoas, ainda que de forma incremental e lenta, o defeito não será tão sério. Foi o que ocorreu com o reformismo americano do início do século 20 ou com o “New Deal” do outro Roosevelt, Franklin Delano, primo de Theodore e da mesma estirpe patrícia. O problema é quando ele não consegue propor nenhuma alternativa real às práticas causadoras dos males atuais e de que os próprios governos reformistas são em parte responsáveis: extrema volatilidade financeira, especulação de cassino geradora de crises, desequilíbrios estruturais de comércio contra os países pobres, tendência crescente aos monopólios, deslocalização irresponsável de empresas, precarização do emprego, monstruosa desigualdade. Mais que de banalidade, o reformismo de hoje sofre de ser invisível, ou melhor, de ser virtual, isto é, de existir mais na imaginação e na promessa que na realidade. Quem nos dera a banalidade do reformismo no sentido de trivial, como o define o “Aurélio”, os pratos simples e cotidianos das refeições caseiras!

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/04/2000.