A cada 15 segundos, um americano é declarado falido. A legislação dos EUA é das raras que prevêem essa modalidade estranha para nós: a falência não limitada às firmas comerciais, mas como fenômeno aplicável às dívidas pessoais. Essa figura cômoda permite passar o apagador nas dívidas de qualquer indivíduo ou família. Sua freqüência aumentou cinco vezes desde os anos 1980.

Um dos fatores principais atrás da explosão do endividamento é o cartão de crédito, mais uma dessas invenções do gênio econômico americano, ao mesmo tempo diabólica e deliciosa. Dizendo de outra forma, só pode vir do demônio a delícia de consumir sem ter dinheiro e de aumentar o consumo mais rápido do que a renda. O resultado é que a família média destina 13% da renda, fora os impostos, só para pagar dívidas, a maior parte com a hipoteca da casa e o empréstimo para o automóvel. Além disso, ainda sobram US$ 8.000 em dívida do cartão de crédito.

Ninguém sonhou com essa evolução em setembro de 1958, quando o Bank of America revolucionou para sempre o mundo, ao enviar 60 mil cartões a famílias que não sabiam de nada, em Fresno, Califórnia. Foi o princípio de uma operação de massa pelo correio, a fim de fornecer cartões de crédito a famílias de classe média. Desde que inventaram os bancos, em priscas eras, foi essa, possivelmente, a inovação mais genial da história para democratizar e simplificar o crédito.

O outro lado da moeda é que ninguém mais pensa em poupar. Em outubro passado, o Departamento de Comércio anunciava quase o desaparecimento da poupança das famílias ianques: somente dois décimos de 1%, o que significa que uma família com ingressos de US$ 40 mil poupa apenas US$ 1,50 por semana. É o que permite destinar ao consumo 80% da renda nacional de uma gigantesca economia de US$ 11 trilhões. No final dos anos 80, o consumo já correspondia a três quartos da renda. No entanto, durante boa parte da fase pós-1945, os americanos produziam o que consumiam. Era a renda proveniente da produção que pagava pelo consumo. A diferença agora é que a produção de muitas mercadorias passou a ser feita no estrangeiro, na China principalmente.

Hoje em dia, de tudo o que se consome nos EUA, 21% vêm de fora, e, desde 1990, essa proporção vem aumentando em um ponto percentual a cada dois anos. Conforme diz o economista-chefe do Morgan Stanley, Stephen Roach: “Nós transferimos para fora (“outsource”) tudo, menos o consumo”.

Roach é pessimista e acha que não vai ser possível sustentar a situação por muito tempo. Pode ser que tenha razão, pois, de fato, o endividamento em relação ao exterior atingiu US$ 4,5 trilhões no terceiro trimestre, o dobro do que era seis anos atrás. A fim de financiar o déficit em conta corrente, Washington tem de receber, por dia, US$ 2 bilhões do exterior, ou quase US$ 5 bilhões se computarmos apenas os dias de trabalho. É por isso, entre outras razões, que o dólar está caindo. O problema é que ele vem escorregando desde janeiro de 2002, o que não impediu que o déficit comercial de outubro passado fosse de US$ 55,5 bilhões. As importações superam atualmente as vendas externas em mais de 50%. Por conseguinte, a fim de fechar o gargalo, seria necessário que as exportações aumentassem o dobro da taxa de expansão das importações.

Entretanto, mesmo com a desvalorização, as compras do exterior têm aumentado, nos três anos recentes, a 0,5% por mês, contra apenas 0,2% para as exportações. É verdade, por outro lado, que uma economia como a dos EUA não precisa zerar o déficit ou produzir um saldo em conta corrente, como o Brasil. Basta que reduza o déficit a algo entre 2% e 3% do PIB, o que seria não só realista mas igualmente salutar para um mundo desesperadamente necessitado de um “consumidor de última instância”. Não se deve esquecer, efetivamente, que a “despoupança” americana é o contrapeso da poupança chinesa (40%), européia (10%) e nipônica (5%).

Os economistas continuarão a discutir se a situação é sustentável até que os fatos, de uma maneira ou de outra, ditem seu veredicto. Enquanto isso, podemos seguir dando graças ao consumidor americano e maravilhando-nos com as boas peças que nos prega a história, nesse caso, a econômica. Fomos educados na crença de que o espírito do capitalismo provinha do protestantismo calvinista, de sua frugalidade, do austero horror que votava ao consumo e lhe permitia tudo reinvestir na produção. Isso continua verdadeiro na etapa de acumulação do capital, como na China. Já nossa época pós-moderna, pós-acumulação, tem gostos alegremente católicos, de consumismo e endividamento, quase chegando aos papas da Renascença ou aos romanos da decadência. Quando os EUA engatinhavam, Alexander Hamilton, seu primeiro secretário do Tesouro, escrevia, em 1781, que a “dívida nacional era uma bênção”, agregando cautelosamente “desde que não excessiva”. Hoje, não falta quem pense que a dívida do consumidor é uma libertação, parte da emancipação da sociedade americana desde os anos 1960 e comparável ao papel da pílula na liberdade sexual: o prazer sem pensar nas conseqüências…

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/12/2004.