O comércio mundial vai bem, mas as negociações comerciais vão mal. Elas não andam nem na OMC (Organização Mundial do Comércio), nem na Alca, nem no Mercosul ou nas deste último com a União Européia, nem em lugar algum. É o oposto de tudo o que nos ensinaram.
Afirmava a sabedoria convencional que, quando a economia internacional e o comércio real se expandem, os preços melhoram e a demanda é vigorosa, todos ganham e se sentem à vontade para fazer as concessões e sacrifícios indispensáveis a qualquer negociação.
Desse ponto de vista, acabamos de sair de dois anos quase imelhoráveis, como diriam os argentinos. O ano passado foi um dos pontos altos em três décadas, com a economia do mundo crescendo a mais de 5% e o comércio aumentando 10,3%. Neste ano foi um pouco menos, mas ninguém pode se queixar, como se vê no extraordinário saldo brasileiro no comércio e em contas correntes, apesar do câmbio cada vez mais desastroso.
Ainda por cima, a demanda chinesa por matérias-primas mantém firme a recuperação dos preços das commodities e a melhora dos termos de troca para o Brasil e para a maioria. Condições ideais, portanto, para levar as negociações a feliz termo. No entanto, as tratativas patinam ou se arrastam em toda parte.
Já se sabe, por exemplo, que, salvo milagre, a reunião da OMC em Hong Kong, no dia 13, será um anticlímax ensaiado, em lugar da solução decisiva para dois terços dos problemas pendentes, como se pretendia antes. Qual é a explicação para tal descompasso entre o risonho mundo real do comércio e o pequeno mundo fracassado das negociações?
A razão está na natureza do problema, que é político, não econômico. Na reunião da OMC em Seattle, em fins de 1999, havíamos visto o mesmo. As manifestações políticas e sociais contra a globalização provocaram o mais brutal fiasco da história do sistema comercial, justo na véspera do que se revelaria o “ano santo” do comércio, que se expandiria em volume à taxa milagrosa de 14%! Algo parecido ocorre em agricultura. O setor não tem grande peso no produto e na proporção da população ativa nos países industrializados, mas a questão é crucial em todos eles quase sem exceção, incluindo o Japão, a Coréia do Sul, a Suíça e a Noruega, sem falar dos gigantes.
Durante cerca de 50 anos, o Gatt promoveu significativa liberalização do comércio de manufaturas. O êxito se deveu, em grande parte, ao isolamento das questões politicamente sensíveis (agricultura e têxteis), mediante regras especiais: os “waivers” ou exceções concedidas aos EUA e estendidas a outros nos anos 50. Isso correspondia ao interesse dos grandes, dos americanos, que tinham política de subsídios à agricultura, e dos europeus, que iniciavam a construção da Política Agrícola Comum na base de forte e sistemático protecionismo.
O sucesso, porém, costuma conter a semente de desafios novos. A amplitude da liberalização atingida na Rodada Uruguai, abarcando até os serviços, esgotou na prática a agenda “fácil”. O que sobrou _agricultura, antidumping, picos tarifários, produtos sensíveis_ é o caroço duro do protecionismo, a agenda inacabada que vem sendo adiada desde a Rodada Tóquio. Tentou-se o estratagema de inventar uma agenda nova, a dos temas não-comerciais da integração profunda _investimentos, normas trabalhistas e ambientais, concorrência_, mas a manobra não pegou.
A agricultura põe à prova a alma da liberalização: a teoria das vantagens comparativas e do livre comércio. Ou essas são verdades que se aplicam a todos os setores ou não se aplicam integralmente a nenhum. Por exemplo, se os subsídios são legítimos em agricultura, não há razão lógica para proibi-los na indústria. Enquanto não enfrentar com êxito sua inadiável hora da verdade, a OMC não terá demonstrado a capacidade de remover, por meio de negociações, não de sentenças não-implementadas, as mais antigas distorções e injustiças que desfiguram e deslegitimam o sistema comercial.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/12/2005.