Não faz muito em Praga o FMI descortinava radioso futuro de crescimento de 4,7% para a economia mundial no ano próximo. Ainda mais risonho era o sonho esboçado meses antes pela OCDE: as inovações na tecnologia das telecomunicações e da informação prometiam devolver-nos ao paraíso perdido da expansão acelerada e durável, sem inflação nem desemprego, como nos Estados Unidos. Evocava-se, a propósito, o longo ciclo do pós-guerra que os franceses denominam os “30 anos gloriosos”, imagem de uma espécie de idade de ouro brutalmente interrompida no subconsciente europeu pelo terremoto do início dos 70.
Esse terremoto foi, na verdade, o somatório de várias convulsões mais ou menos simultâneas: a desmoralização política e o agravamento inflacionário da Guerra do Vietnã, a decisão de Nixon de abandonar o regime fixo de paridade cambial de Bretton Woods, a Guerra do Oriente Médio de 1973 e o primeiro choque do petróleo.
Seria exagero querer comparar o momento atual àqueles dias tumultuados. Os EUA estão mais fortes do que nunca, a inflação mundial é baixa, a maioria dos países ou goza de saldo orçamentário ou tende a eliminar o déficit. No entanto, conforme lembrado no artigo anterior, a confiança no sistema internacional, condição da segurança e da prosperidade, corre renovado (embora atenuado) risco pelo efeito cumulativo de várias comoções: o retrocesso nas perspectivas de paz entre árabes e israelenses, o afundamento do euro, a disparada do petróleo, o nervosismo das Bolsas, às quais haveria a acrescentar os primeiros sinais de complicações na Ásia (desaceleração das exportações, enfraquecimento das moedas, dificuldades na reforma do sistema financeiro) e os temores sobre a Argentina.
Isoladamente, nenhum desses fatores é irremediável. Seu efeito conjunto, porém, começa a subverter a confiança que se vinha penosamente recuperando após as severas sacudidas das crises monetárias e financeiras dos últimos anos. É esse justamente o ponto fraco da estrutura política e econômica atual: seu grau de instabilidade e incerteza é incomparavelmente superior ao do passado próximo.
Antes, durante a Guerra Fria, o equilíbrio do terror assegurava a previsibilidade expressa na fórmula lapidar de Raymond Aron: “Paz impossível, guerra improvável”. Os problemas não se resolviam, tampouco degeneravam em conflito aberto, salvo quando as duas potências polares não conseguiam controlar seus clientes ou os incitavam para ver no que daria. Ninguém suspeitava da existência da Bósnia, do Kosovo, da Tchetchênia, que dormiam na paz dos cemitérios.
A mesma estabilidade relativa imperava no domínio econômico: era fixa a relação entre as grandes moedas conversíveis, os fluxos de capital privado de curto prazo eram limitados, a colaboração e coordenação entre as maiores economias, inauguradas no Plano Marshall e continuadas na OCDE, cujo próprio nome provém desse espírito (Organization for Economic Cooperation and Development), faziam sentir ainda sua influência benfazeja. Pretender que o mercado financeiro de hoje nos serve melhor do que então exigiria explicar por que, na época, os industrializados, a América Latina e o Brasil cresciam muito mais do que agora.
Seria também preciso demonstrar que a crescente frequência das crises nada tem a ver com a volatilidade desses mercados ou com a excessiva oscilação das moedas, reflexo, por sua vez, dos desequilíbrios macroeconômicos entre EUA, Europa e Japão. Quase 30 anos depois da decisão de deixar flutuar as moedas e da previsão de que, após dois ou três anos de turbulência, se encontraria novo equilíbrio, continuamos a assistir a episódios como a perda de 30% no valor do dólar em um ano em seguida ao Acordo do Plaza ou de um quarto do valor do euro recentemente. E, como advertiu o BIS (Bank of International Settlement) de Basiléia, o reverso da medalha do enfraquecimento excessivo do euro é o fortalecimento exagerado do dólar. Pode demorar, mas algum dia a correção terá de se fazer, pois o déficit comercial americano não tem condições de crescer indefinidamente e, como gigantesco “buraco negro”, engolir todo o excesso da poupança mundial.
Diante desses problemas sistêmicos, é inquietante ver como, apenas passada a crise, retoma-se a complacência do “business as usual”, engavetam-se os planos de refazer a arquitetura financeira e, em vez de mexer nas fundações, prefere-se mudar os vidros das janelas ou pintar a fachada de cor-de-rosa. Na Organização Mundial do Comércio é a mesma coisa: Seattle é, cada vez mais, uma fotografia na parede, que dói, mas amarelece e declina na memória.
Como não existe vontade política para suprir e corrigir pela coordenação e colaboração as falências dos mercados monetários e financeiros, cresce a instabilidade e com ela a perda de confiança no sistema. Ora, só haverá crescimento acelerado e durável se aumentar o investimento de longo prazo _e este só se viabiliza com a confiança. Parece temerário, portanto, imaginar um regresso ao paraíso perdido da idade de ouro, a não ser que se empreenda esforço decidido para restituir ao sistema internacional a capacidade de evitar ou resolver as crises mais destrutivas da esperança política de paz e econômica de prosperidade.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/11/2000.