Empresto o começo do título de Dora Kramer, que se inspirou, por sua vez, nos muros de Paris de maio de 68. Em coluna recente, ela conta que o presidente e o governador do Distrito Federal, embora de partidos opostos, concordam sobre a necessidade de idéias novas capazes de gerar projeto alternativo, já que o atual parece ter sido atropelado e envelhecido pela velocidade dos acontecimentos.
Soube pela mesma fonte que Cristovam Buarque me incluiu, com sua habitual generosidade, entre os brasileiros que poderiam dar contribuição nesse sentido. Dos nomes citados, sou o único de residência permanente no exterior. Achei-me, assim, no avião que me conduz a Xiamen, China, no dever de escrever algo para tentar justificar a homenagem do governador.
De saída, deveríamos concordar sobre três pressupostos:
1) A estabilidade não basta, mas é o pedestal do monumento, a pré-condição do projeto que falta definir e edificar, sem comprometê-la;
2) Modelos não se importam nem se imitam, mas têm de ser elaborados não a partir de utopias ou ideologias, liberais ou antiliberais, novas ou velhas, mas com base no real, aqui e agora, portanto sobre as condições brasileiras concretas;
3) Apesar de não haver mais lugar para escolha entre extremos opostos, comunismo versus capitalismo em estado puro, negro ou branco, mas apenas gradações de cinzento, o grau de opção depende, entre outros fatores, do tamanho da população e do território, isto é, da dimensão do mercado atual ou potencial, o que nos situa, com os EUA, a China, a Índia, a Rússia, no clube exclusivo dos gigantes continentais ou países monstro, na fórmula de George Kennan.
Daí decorre a primeira característica da proposta: estamos falando de projeto nacional, brasileiro, quer dizer, tão autônomo como possível. Aqui também, como na questão dos modelos, não se pode mais conceber a autarquia, a auto-suficiência, a independência absoluta. Isso não significa, contudo, aceitar mais do que o grau inevitável de dependência, procurando-se encolhê-lo ao mínimo indispensável.
Para quem julga isso conversa fiada, pois não haveria espaço para ser diferente das demais, basta mencionar exemplo honroso para o ministro Malan, a negociação da dívida externa.
Graças a ele, o Brasil foi o único país a conseguir, em 94, fechar e assinar o acordo com os bancos comerciais sem precisar passar por programa de condicionalidades com o FMI, diferentemente do México, da Argentina e outros. Custou-nos bancar as garantias com nossas reservas, mas valeu a pena, pois ganhamos quatro anos sem ingerências de organismos de fora.
Pena que, tendo escapado à férula do FMI, viéssemos a cair sob outra pior, a dos mercados financeiros, monstro anônimo, lunático e caprichoso que se alimenta de carne humana. Portanto, assim que se acalme a tormenta, deveríamos tratar de cortar, tão rápido como possível, o endividamento de curto prazo, retomando mecanismos como a quarentena aplicada pelo Chile, a fim de desestimular os capitais especulativos.
Nessa como em outras matérias é preciso guardar o senso da medida. Não se trata de eliminar totalmente, mas de diminuir o recurso ao dinheiro de curto prazo. A renúncia absoluta é provavelmente não só inviável como talvez desnecessária, havendo casos em que tais recursos poderão ser úteis.
O susto da crise atual tem tido o mérito de forçar o reexame das premissas adotadas até agora. Esboça-se consenso em torno dos seguintes pontos:
a) Exagerou-se na dose da valorização da moeda e é necessário corrigir o erro, de preferência de forma progressiva mais acelerada até que ela volte ao equilíbrio;
b) Como essa é operação que demanda certo tempo, será preciso conceder estímulos compensatórios (creditícios, fiscais) para promover as exportações na fase inicial;
c) Mesmo a contração da atividade econômica acarretada pelos juros altos não foi suficiente para derrubar as importações (que se mantêm em patamar preocupante em fase de crescimento econômico quase nulo) ou o déficit em turismo (que chegou, em certo momento, a três vezes o de fretes, fato sem precedentes em nossa história); é provável que, de forma judiciosa, seja necessário podar os excessos em tais campos, dispondo-se de meios para fazê-lo sem inúteis complicações com a Organização Mundial do Comércio (em caso agudo de deterioração, pode-se recorrer ao artigo 18-B do Gatt, que permite medidas restritivas das importações).
Será difícil fazer isso se os controles cambiais não forem mantidos e possivelmente aumentados ou refinados, a fim de poder reduzir os juros internos sem provocar o colapso da moeda.
Nosso colonialismo mental é de tal ordem que bastou Paul Krugman recomendar a medida para ser saudado como o inventor da pólvora, apesar de se tratar de remédio heróico manjadíssimo, receitado para os grandes males por todos os clínicos prudentes, inclusive há décadas pela organização a que pertenço, a Unctad. Esta vem aconselhando a avançar com cautela e vagar na liberalização e integração financeira, objetivos desejáveis, mas de delicada realização, se se quiserem evitar acidentes graves.
Todas essas medidas se resumem a uma só meta: recuperar a capacidade de crescer sem ser estrangulado pela volta da inflação ou pelos desequilíbrios externos. Uma vez reconquistado um mínimo de margem de manobra, devemos atentar para não comprometê-la de novo em três áreas de perigo:
1) A dos investimentos, na qual se impõe conservar o poder nacional de orientar e supervisionar, não sucumbindo a acordos multilaterais que nos limitem a autonomia em troca de quimeras, já que nossos trunfos são e serão sempre a dimensão e o dinamismo do mercado interno;
2) A das privatizações com controle estrangeiro, ilusória panacéia se não forem acompanhadas de regulamentação efetiva e da imposição de genuíno regime de concorrência, mais vital que o domínio público ou privado da propriedade e/ou gestão, cuidando-se aqui de não agravar mais ainda a já perigosa desnacionalização do setor bancário;
3) A do comércio exterior, na qual temos de suscitar e resolver os problemas de implementação da Rodada Uruguai em setores como o automobilístico e ampliar o acesso aos mercados dos estrangeiros na mesma medida em que lhes franqueamos o nosso.
Admito que, em certos aspectos, a mudança de orientação será considerável. Ninguém, entretanto, nem no governo, deve por isso sentir-se culpado de inconsistência, pois, tendo-se alterado as primícias, o mercado financeiro mundial passou de promessa a ameaça, obrigando-nos consequentemente a modificar as conclusões.
A pedra de toque de todo projeto autenticamente nacional é seu compromisso, antes e acima de tudo, com os interesses do povo brasileiro, que passam antes dos do FMI e de Wall Street, da OMC, do “Consenso de Washington”, de abstrações mitológicas como o livre comércio e a globalização financeira, das negociações da Alca e até do Mercosul, caso o horizonte deste último continue o da realização de cada sócio dentro de limites estritamente nacionais.
Como traduzir em termos claros e concretos esse compromisso com o nosso povo será o tema mais árduo do segundo e próximo artigo, no momento em que, no aeroporto de Hong Kong, pingo o ponto final neste primeiro, apropriadamente escrito no aniversário da nossa Independência.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/09/1998.