Não é a economia de mercado ou a globalização que separa hoje as pessoas ou as faz descer à rua como em Seattle: é a questão da desigualdade e o que se pode fazer a respeito. Poucos contestam que a economia de mercado é mais eficiente que a centralmente planificada ou que a revolução das comunicações e da informação tornou mais intensas entre os homens as relações de todo gênero. O problema é saber se é inevitável o aumento da desigualdade que vem acompanhando a afirmação dessas tendências ou se existe espaço para combatê-la.
É o que dizia, tempos atrás, Norberto Bobbio, que se esforçou, a vida inteira, em conciliar o melhor da herança liberal e da socialista. Perguntaram-lhe se ainda se justificava manter a velha dicotomia esquerda-direita e ele opinou que sim, pois, reduzida ao essencial, a divergência entre os dois pólos continuaria válida.
A direita abarcaria em última análise todos os que acham que a desigualdade e o desequilíbrio fazem parte da natureza das coisas, que o mundo sempre foi assim e pouco ou nada se pode fazer para mudá-lo.
A esquerda, ao contrário, é a família espiritual dos que não se resignam a aceitar a sociedade tal como é: convencidos de que ela é produto dos homens, e não o resultado imutável do determinismo dos fenômenos naturais, lutam para torná-la menos desigual e mais compassiva.
Essas duas atitudes se manifestam claramente no debate entre os economistas sobre a desigualdade na distribuição da renda e encontram expressão em dois estudos que desafiam a passividade e o derrotismo. O primeiro se intitula “É inevitável o aumento da desigualdade de renda? Uma crítica do Consenso Transatlântico”, conferência proferida no Instituto Wider da Universidade das Nações Unidas em Helsinque (o texto pode ser obtido em
www.wider.unu.edu). Seu autor é o professor Anthony B. Atkinson, professor de Oxford, ex-professor de Cambridge e ex-presidente da Royal Economic Society. O segundo, cujo exame deixarei para a próxima semana, traz por título “A distribuição de renda e o desenvolvimento” e foi apresentado pela professora Frances Stewart, também de Oxford, à conferência da Unctad em Bancoc (o texto está disponível em www.unctad-10.org/doclist/main.en).
Atkinson parte da constatação de que a desigualdade de renda tem crescido em muitos países industrializados e da crença de que isso seria inevitável. O que ele chama de “Consenso Transatlântico” é a opinião predominante em muitas instituições econômicas dos Estados Unidos e da Europa segundo a qual o aumento da desigualdade no primeiro e o elevado desemprego estrutural na Europa continental se deveriam às mudanças tecnológicas ou à globalização do comércio mundial. Para essa corrente, a revolução na tecnologia de informação ou as importações de manufaturas de países em desenvolvimento de salário baixo enfraquecem a demanda por trabalhadores não-qualificados nos países ricos, privilegiando cada vez mais os trabalhadores qualificados já altamente remunerados.
Atkinson observa, entretanto, que esse aumento da desigualdade nem é universal em todos os países avançados nem é da mesma extensão quando está presente. Citando estudo da própria organização especializada no acompanhamento das economias industrializadas, a OCDE, o que se verifica é que “não emerge nenhuma tendência clara de aumento generalizado em desigualdade de rendimentos na primeira metade dos anos 90. Dos 16 países examinados (…) a dispersão cresceu na metade deles e permaneceu, de modo geral, sem mudanças ou declinou relativamente no resto”.
O agravamento nas disparidades é fenômeno característico mais dos Estados Unidos e, sobretudo, da Inglaterra e, nesta última, concentrou-se particularmente entre 1977 e 1989 (em grande parte o período Thatcher), não tendo havido deterioração na época do governo Major, de 1990 a 1997. Em contraste, não se nota tendência similar na França ou no Canadá. O caso canadense é revelador, pois, como diz o autor: “Temos aqui dois países da América do Norte, com longa fronteira comum, consideráveis fluxos econômicos por meio da fronteira, onde o grau de integração aumentou com o Nafta, e, no entanto, os padrões de desigualdade de renda são notavelmente diferentes”.
A conclusão de Atkinson é que as disparidades não são apenas a consequência de eventos externos imodificáveis, mas o resultado de evolução em atitudes, reações e normas sociais, tais como as encarnadas no movimento liderado em sua época por Reagan e Thatcher. Dentre as mudanças trazidas por esse movimento se inscrevem, por exemplo, várias que contribuíram poderosamente para acentuar as desigualdades: o abandono da taxação progressiva da renda, a adoção de sistema de remuneração menos igualitário e redistributivo e mais determinado pelo mercado, a recompensa bilionária aos altos executivos, em salários e opções por ações. As disparidades não se ampliaram justamente nos países que continuaram a moderar e modificar a ação dos mercados mediante a tributação progressiva e as transferências sociais corretivas financiadas pelo Orçamento. Em outras palavras: “O fato de que a força determinante é social na origem _mais do que o comércio ou a tecnologia_ significa que existe mais espaço para a liderança política. As normas sociais podem ser influenciadas por decisões políticas e, dessa forma, o aumento da desigualdade não é inevitável”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/07/2000.