Seria essa a melhor tradução da frase do secretário do Tesouro de Nixon, John Connolly, a propósito do dilema monetário do mundo em relação ao dólar: “Our currency, but your problem”. Quando a leio, me vem sempre à memória outra frase reminescente de tempos menos angustiados. É a de Thomas Mann descrevendo a sensação de receber, na Munique pré-1914, o pagamento em duas moedas de marco-ouro pela venda de sua primeira novela: “Quem nunca foi pago em ouro jamais poderá imaginar a estabilidade de antes da Primeira Guerra Mundial, um mundo em que nada de importante mudava, nem o valor das moedas nem as outras coisas”.

Em Bretton Woods, ao término de duas guerras que eram, no fundo, uma a seqüência da outra, tentou-se ainda o sonho impossível de fixar o valor das moedas conversíveis, ancorando-as em relação ao dólar, que valia um determinado peso em ouro. Entre 1971 e 1973, final da Guerra do Vietnã, fase de inflação e déficit, Nixon, sem consultar ninguém, demoliu os dois pilares de Bretton Woods. Dizia-se então que, após três ou quatro anos de turbulência, os mercados monetários voltariam a um equilíbrio natural. Foi há mais de 30 anos, um terço de século…

Desde então, em momentos mais perigosos, tentaram-se acordos multilaterais estabilizadores: Smithsonian, Hotel Plaza, Louvre. As ameaças voltaram agora a crescer com a aceleração da queda do dólar, primeiro resultado econômico da reeleição de Bush. A queda data de 2002: a partir daquele ano, o dólar já caiu 32% ante o euro e 21% diante do iene, mergulhando a profundidades de dez anos atrás.

O problema é que isso não foi acompanhado, como rezam os compêndios, pela redução ou pela eliminação dos déficits em comércio e conta corrente dos EUA. Ao contrário, exceto no mês passado, esses déficits têm aumentado continuamente e atingiram 5,5% do PIB, nível que teria liquidado o Brasil havia muito tempo.

Existe consenso quanto à chamada tríplice estratégia para resolver o desafio. Os EUA têm de reduzir a demanda e o consumo, elevar sua baixíssima poupança e cortar o déficit do Orçamento. Trocando em miúdos, os americanos precisam importar menos do resto do mundo, exportar mais e enfrentar o aumento de suas despesas fiscais. O Japão e a Europa necessitam estimular o crescimento por meio da demanda interna e deixar de depender das exportações ao mercado ianque para crescer (anemicamente). A China, por fim, e os demais asiáticos na mesma situação deveriam fazer como o nosso obediente Banco Central e permitir que suas moedas se valorizassem diante do dólar.

Em tese, todos concordam. Na prática, cada um age segundo o princípio do “sacroegoísmo”. O risco é que, de uma hora para outra, o que vem sendo para o dólar uma tranqüila descida de colina vire uma avalancha destrutiva. É o que sucederia se os estrangeiros que financiam o déficit externo americano na base de US$ 600 bilhões por ano decidissem que é prudente parar e diversificar. Nesse caso, o dólar poderia ter de sofrer desvalorização adicional de 40%, obrigando a elevar abruptamente os juros e ocasionando provavelmente uma recessão. O impacto seria devastador para as economias do Japão e da Europa, que, no passado trimestre, já estavam crescendo não apenas a metade ou o terço mas um décimo da americana!

Não surpreende, assim, que muitos sonhem com a repetição do Acordo do Plaza, de setembro de 1985, quando as autoridades financeiras das cinco maiores economias (EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido e França) resolveram cooperar a fim de possibilitar a depreciação ordenada do dólar (30% em dois anos) e o reequilíbrio das contas externas de Washington.

Só que muito do que mudou desde então foi para pior. Não só as relações políticas entre os EUA e os demais estão longe de cooperativas mas o déficit em conta corrente, na época de 2%, está beirando atualmente os 6% do PIB. Seria preciso contar com a colaboração da China, que já declarou não estar disposta a valorizar logo. Ainda por cima, a reequilibragem foi enormemente ajudada, em 1986, pelo contrachoque petrolífero, responsável pela queda de 50% nos preços. Ao passo que agora…

Nessas condições, a última coisa de que precisava o dólar era do empurrão adicional que lhe deu, ladeira abaixo, o presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, ao sugerir, na semana passada, que a maior parte do ajuste viria da desvalorização da moeda. Para o Brasil, são preocupantes todas as implicações dessa tendência, que torna mais absurda do que já é a complacência do Banco Central com a apreciação do dólar em reais.

O resto é também complicado: a contração do maior mercado para nossas exportações, o acirramento, em terceiros mercados, da concorrência de produtos americanos, mais baratos por causa da desvalorização do dólar, a redução da demanda importadora de outros grandes mercados brasileiros como a China, a Europa, a Ásia, em conseqüência do ajuste.

Quanto aos juros, então, nem é bom falar. O próprio Greenspan, ao mencionar futuros aumentos das taxas, foi quase ameaçador, ao dizer que esses aumentos “tinham sido anunciados por tanto tempo e em tantos lugares que, a esta altura, quem não assegurou sua posição de modo adequado é porque está obviamente desejoso de perder dinheiro”. Esperemos, também obviamente, que isso nada tenha a ver com o nível de nossas reservas nem de nossa moeda em relação ao dólar.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/11/2004.