Fiquei intrigado com editorial de “O Estado de S. Paulo” (“Em defesa da globalização”, 16/7) no qual se comenta criticamente artigo meu nesta coluna (“Fuga para a frente”, 9/7). Para situações como essas, a sabedoria americana recomenda fórmula rimada: “Don’t explain, don’t complain”, ou seja, “Não explique, não reclame”. Desse conselho duplo, acatarei o segundo, pois não tenciono queixar-me do processo de intenção pelo qual me foram atribuídos intuitos que não são os meus.
Deixando para o Juízo Final a exploração do domínio subjetivo das intenções, prefiro tentar entender em que divergimos, o editorialista e eu. A fim de ilustrar a enorme desigualdade de pontos de partida diante da revolução da Internet, lembrava meu artigo que, só na cidade de Nova York, há mais telefones que em toda a África.
Partindo desse exemplo, o editorial afirma que, a fim de resolver a desigualdade, a melhor maneira é dar mais telefones aos países africanos, os quais precisarão importar capital e tecnologia, pagando por ambos com exportações para os mercados dos ricos. Encurtar a distância que os separa dos ricos será muito difícil, já que estes dispõem de todos os fatores para gerar mais riqueza ainda.
Até aqui estamos de acordo e não haveria razão para querelas. Onde começamos a discordar é em relação às causas da desigualdade, tanto no que se refere ao papel da Revolução Industrial em cavar o fosso que separa o Primeiro Mundo do Terceiro Mundo como da ação do capitalismo globalizado em voltar a agravar, nos dias atuais, as disparidades entre classes e povos.
É impossível negar que, nesses dois momentos históricos, a desigualdade tenha dado um salto quântico. Basta pensar na pauperização das massas nas primeiras décadas da industrialização, cujos ecos marcam tanto o “Manifesto Comunista” como os romances de Dickens e Victor Hugo. Em nosso tempo, uma economista insuspeita, Nancy Birdsall, ex-vice-presidente do BID pelos Estados Unidos, dizia na revista “Foreign Policy”: “Exatamente 150 anos após a publicação do ‘Manifesto Comunista’, a desigualdade ocupa amplo espaço na agenda global. Nos EUA, a renda dos 20% das famílias mais pobres declinou continuamente desde o início dos 1970. Enquanto isso, a renda dos 20% mais ricos aumentou em 15% e a do 1% no topo, em mais de 100% (…). Em nível global, a relação entre a renda média do país mais rico do mundo comparada à do mais pobre, que era de 9 para 1, no fim do século 19, cresceu para ao menos 60 para 1 hoje em dia”.
O editorial reconhece a coincidência entre esses momentos históricos e o agravamento das disparidades, mas recusa estabelecer, entre uma e outra, relação de causa e efeito. Antes da Revolução Industrial, todos eram pobres; depois, os que fizeram a revolução enriqueceram; “Os que ficaram de fora por razões políticas, econômicas e culturais continuaram pobres”. O mesmo valeria hoje para a era de crescimento globalizado: “Quem pegar essa onda vai crescer, quem ficar de fora permanece pobre ou cresce pouco”.
Não se explicitam quais são essas “razões políticas, econômicas e culturais” que levaram muitos países a ficar de fora, mas dá-se a entender que é culpa deles ou matéria de livre escolha: “Quem pegar a onda”… Há, evidentemente, um pouco de verdade na afirmação, mas será toda a verdade? Não caberá alguma parcela de responsabilidade a esses próprios processos históricos? Não haverá neles uma tendência concentradora e da autoperpetuação, que tende a favorecer a que os ricos fiquem cada vez mais ricos?
É claro que existem as exceções, que confirmam a regra. Ontem, os países ocidentais que replicaram o exemplo da Inglaterra; hoje, os dragões asiáticos e a China. Por que, porém, são tão pouco numerosos os exemplos de sucesso se os dois fenômenos foram tão fantásticos nas oportunidades criadas? Achar que os fracassados só têm a si mesmos para responsabilizar pelo fracasso seria repetir, como se fazia antigamente, que os pobres são os últimos culpados da própria pobreza.
O mais razoável é admitir que a revolução da informação _assim como a industrial, a globalização e a economia de mercado_ possui indiscutível potencial positivo. Nem por isso todas elas deixam de constituir parte integral de estrutura global fortemente desequilibrada e desfavorável aos pobres e vulneráveis, dentro dos países ou entre eles. Um exemplo entre muitos é o do sistema comercial da OMC, que proíbe o Brasil de equalizar as condições de financiamento dos aviões da Embraer em relação aos níveis prevalecentes no mercado internacional, mas dá inteira liberdade à França ou aos EUA para subsidiar exportações agrícolas, em detrimento do frango ou do óleo de soja brasileiros, por exemplo. Desse modo, se inviabiliza o que o editorial recomenda: exportar aos ricos para financiar as importações.
Deixada a si mesmo, a lógica da tecnologia e da economia de mercado, pré ou pós-globalização, é reforçar mais e mais a desigualdade, como sugere o próprio editorial ao reconhecer a dificuldade em encurtar a distância entre ricos e pobres. A disparidade não se corrige automaticamente por si mesma ou pela ação espontânea de algum imaginário mecanismo de mercado, como se vê na história da Revolução Industrial. O que finalmente podou os excessos iniciais, como as jornadas de trabalho até 14 ou 16 horas, o trabalho desumano de crianças de menos de 6 anos, os salários de fome, não foi a “mão invisível” do mercado, mas a mão bem visível dos Parlamentos e Executivos, sindicatos e partidos, ao votar e impor as leis sociais. Nada justifica esperar, agora, que será diferente com a globalização ou a revolução da informação. Em outras palavras, o considerável potencial positivo desses fenômenos só se realizará se eles forem subordinados a valores humanos mais altos, como a equidade e a solidariedade. Não foi só o sábado que foi criado para o homem, em vez do homem para o sábado, como nos ensinou autoridade maior. A globalização, o mercado e a tecnologia também.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/07/2000.