Se a proposta da Alca não deve ser de saída considerada inevitável nem inconcebível, quais seriam as condições para torná-la possível e até vantajosa? É o que tentou definir a Coalizão Empresarial Brasileira, coordenada pela Confederação Nacional da Indústria, em proposta submetida ao foro empresarial realizado na última semana, em Buenos Aires.

É, na forma e fundo, documento modelar: claro e direto, preciso e conciso, bem escrito e sólido no conhecimento técnico. Equilibra as afirmações com senso de proporção e medida, dispondo-se a aceitar o desafio, mas exigindo, em contrapartida, prova de que a liberalização desejada não é seletiva nem esconde o protecionismo tradicional de certos setores.

Já na apresentação, o presidente da CNI diz o essencial em três pontos: 1º) o interesse dos empresários não é incondicional e depende do modelo de integração a ser adotado; 2º) esse modelo deve melhorar substancialmente o acesso aos mercados hemisféricos de setores prejudicados pelo protecionismo; 3º) para que isso ocorra, o importante não é antecipar prazos, mas acolher os interesses de todos.

Elaborando sobre esses pontos, os empresários insistem em que, na perspectiva do Brasil, a Alca só se justifica se conseguir evitar a imposição de barreiras não-tarifárias adicionais a produtos brasileiros e corrigir as distorções originadas nos subsídios à exportação ou outros apoios à agricultura.

Expressam preocupação porque em alguns grupos de negociação tem havido avanços expressivos, ao passo que pouco ou nenhum progresso se registrou até agora em agricultura e antidumping, subsídios e medidas compensatórias.
Ora, são esses os setores de interesse especial do empresariado nacional, em razão do aumento da aplicação de antidumping e direitos compensatórios contra o aço brasileiro e a enorme concentração de instrumentos protecionistas na agricultura e agroindústria: picos e escaladas tarifárias, barreiras não-tarifárias, subsídios e créditos à exportação que distorcem a competição no hemisfério e terceiros mercados.

Nesse terreno, o temor não é hipotético. Os piores prognósticos começaram a materializar-se na reunião de Lima, em janeiro, quando ficou claro que, para os americanos, negociações sobre antidumping só podem ocorrer no âmbito multilateral da OMC. Em Genebra a notícia foi recebida com irônica surpresa, pois é notória a resistência dos EUA a reabrir essa questão, o que foi, aliás, uma da razões das dificuldades na abortada reunião de Seattle. As apreensões aumentaram com reportagem do “Financial Times” na qual se afirma que, a fim de ganhar apoio do Congresso a sua política comercial, a nova administração em Washington estaria convencida da necessidade de proporcionar apoio adicional ao setor do aço, justamente o mais assíduo e intransigente usuário de antidumping e direitos compensatórios. É pouco provável que se abrande a atitude do setor, no momento preciso em que a desaceleração econômica faz cair as encomendas.

Em agricultura, não é segredo que a batalha decisiva da liberalização se dará com a Europa, o Japão e outros países industrializados menores. São esses os mercados cobiçados pela agricultura americana, da mesma forma que, para essa última, a concorrência mais agressiva em terceiros mercados provém dos subsídios de exportação europeus. É difícil, assim, imaginar que americanos e canadenses se disponham a gastar na Alca os trunfos que reservam à negociação agrícola que para eles verdadeiramente conta, a da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Se os fatos confirmarem a lógica pouco alentadora dessas deduções, logo nos veremos confrontados com autêntico dilema do dicionário: situação difícil da qual as duas saídas são igualmente penosas. Uma associação de livre-comércio é, nos termos do artigo 24 do Gatt, a que elimina todas as restrições tarifárias e não-tarifárias incidentes sobre o comércio de, essencialmente, a totalidade dos produtos originários dos países da associação. Interpreta-se na OMC o advérbio essencialmente como significando cerca de 85% do universo do intercâmbio.

O risco, ou melhor dito, a probabilidade à luz das indicações concretas até o momento, é que os 15% não incluídos deixem de fora exatamente os produtos e tipos de barreira em que se concentram os interesses brasileiros.

Herdaríamos o pior de dois mundos. Não ganharíamos, devido a essa exclusão seletiva, acesso comercial adicional nem mesmo a garantia de não sermos vítimas de novas discriminações. Em compensação, pouco nos beneficiaríamos nos 85% incluídos, da eliminação de tarifas que já são em média muito baixas nos EUA (exceto nos 15% provavelmente excluídos), ao mesmo tempo em que teríamos de abrir mão das tarifas mais elevadas que protegem setores vulneráveis brasileiros. Sem mencionar, é claro, as perdas decorrentes da desaparição da margem de preferência que favorece muitas de nossas exportações nos países latino-americanos.

A equação, como se vê, é difícil. Nas bases atuais, o modelo de integração proposto não teria como preencher a condição com acerto estabelecida pelo presidente da CNI: melhorar substancialmente o acesso aos mercados hemisféricos de setores prejudicados pelo protecionismo. Contra a implacável tirania dos fatos e da lógica, só dois remédios existem. O primeiro é mudar positivamente os fatos e a lógica, o que apenas pode ser feito pelos principais interessados no projeto, os EUA. O outro caminho é coordenar e sincronizar as negociações dos temas a ser incluídos na Alca com os daqueles que, embora cruciais, forem relegados à OMC (o resíduo de 15%), procurando garantir que, nos dois processos, os resultados finais sejam equilibrados e aplicados no mesmo horizonte de tempo. Como fazer isso será matéria para o próximo artigo.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 08/04/2001.