Lembrei em meu último artigo que Thomas More, inventor da palavra ”utopia” (em lugar nenhum), imaginou a sociedade ideal, governada pelo amor cristão e a razão, na qual todos partilhariam com igualdade casa, comida, escola, governo e filosofia.

Decapitado por Henrique 8º, que acaba de ser comemorado pelos correios ingleses com um selo no qual aparece rodeado de suas sete mulheres, More foi considerado por Chesterton, ”o maior dos ingleses, ou ao menos a maior personalidade da história da Inglaterra”.

Semelhante opinião tinha seu grande amigo, Erasmo, para o qual ”sua alma era mais pura do que qualquer neve, seu gênio era tal que a Inglaterra jamais havia tido e nunca mais terá igual”.

Se Thomas More foi o utopista da sociedade perfeita, o próprio Erasmo fez o mesmo em relação à paz perpétua. Para ele, era ”melhor uma paz injusta que uma guerra justa”. Não aprovava a cruzada contra os turcos, pois os cristãos corriam o risco, ao recorrerem aos mesmos métodos, de ”degenerarem em turcos”. Indignava-se diante do silêncio dos religiosos: ”O’ teólogos sem língua, o’ bispos mudos, que assistis sem tomar qualquer iniciativa a este flagelo da humanidade!”.

Desde então já se passaram mais de 500 anos e continuamos a não ter nem justiça no interior das sociedades, nem paz entre elas. O que não impede que cada geração renove o sonho da justiça e da paz, sem se desencorajar com os fracassos anteriores.

O último nessa longa série, a Revolução Russa, inscreveu o nome de Thomas More entre os dos seus inspiradores, na praça Vermelha, como a atestar a genealogia longínqua das utopias do nosso tempo.

Mais perto de nós, quando o leninismo já havia desmoralizado o ideal do ”homem novo”, os estudantes de maio de 68 ousaram um sonho ainda maior: o de ”mudar a própria vida”. Seria a busca, como queria Michel Foucault, de novas formas de existir, por meio da redefinição da relação consigo mesmo e com os outros, por exemplo no velho domínio tabu da sexualidade (o feminismo e a relação mulher-homem, o homossexualismo).

O sonho de 68 teria um destino inglório. Plagiado pelos fundadores do novo Partido Socialista, iria fornecer o sopro de entusiasmo que levaria Mitterand ao poder em maio de 81, num mar de rosas vermelhas. Quinze anos mais tarde, o balanço é melancólico. Os socialistas, na França como na Espanha, agiram como os síndicos da massa falida dos respectivos regimes capitalistas, como haviam feito antes e fariam depois outros homens de esquerda em outros países. Após sanearem as economias e, em nome disso, se resignarem a níveis escandalosos de desemprego, foram pagos com a derrota eleitoral. Primeiro entregaram à direita a bandeira da luta contra o desemprego para depois entregar-lhe o poder.

Mas o desempenho não se impressiona com a etiqueta dos governos e, salvo uma ou outra exceção, continua a assombrar a Europa. Apesar da conclusão do Mercado Comum em 92, da Rodada Uruguai em 94, a Alemanha, segunda maior nação exportadora do mundo, vem de registrar 4,6 milhões de desempregados, número jamais visto desde 33, o ano agourento em que Hitler foi nomeado primeiro ministro.

Ficou difícil, assim, mesmo para os mais intrépidos, insistir em pregar às massas de desempregados ou à ”classe ansiosa” mencionada pelo presidente Clinton a boa nova da globalização como promessa de prosperidade e bem-estar.

É um sinal dos tempos que o roxo da Quaresma, período de reflexão e penitência, coincida, de um lado, com o agravamento do desemprego na Alemanha, na França, na Suíça, do outro, com o aparecimento de vozes que começam de novo a colocar as questões éticas de justiça, igualdade, solidariedade, esquecidas pelo triunfalismo globalizante.

Dentre essas manifestações, duas são obras de jornalismo econômico recentemente publicadas nos Estados Unidos. ”Everything for Sale”, de Robert Kuttner e ”The Manic Logic of Global Capitalism”, de William Greider. A mais insólita é a terceira, sobretudo pelo inesperado da origem, o artigo de George Soros, ”The Capitalist Threat”, aparecido no número de fevereiro de ”The Atlantic Monthly”. Nele, o rei dos especuladores afirma categoricamente que o capitalismo de tipo ”laissez faire” tomou hoje o lugar do comunismo como a mais grave ameaça às sociedades abertas.

De longe a reflexão de mais alta qualidade é o quarto desses documentos, o discurso de despedida do ex-secretário de Trabalho dos EUA, Robert B. Reich, intitulado ”A Agenda Inacabada”.

Na série de artigos que hoje inicio, tenciono comentar essas diferentes expressões do mal-estar crescente com o atual estado de coisas. Voltarei também a examinar a incessante busca do homem por modelos de sociedade e economia, utópicos ou não. Concluo com uma amostra do discurso de Reich. Após esclarecer que a ”agenda inacabada” é a da desigualdade em aumento e de denunciar o perigo de sociedades divididas entre ricos e pobres, ele assim termina: ”O futuro é rico em possibilidades _mas não há como escapar da questão moral subjacente, que é também uma questão política. Estamos ainda juntos nisso ou não?”

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15/02/97.