“O crescimento da economia global em 2001-2002 será o mais fraco de qualquer outro período bianual dos últimos 30 anos.” Essas palavras sombrias não provêm do FMI ou da Unctad, mas de entidade próxima ao mercado financeiro, o boletim JP Morgan. Os serviços combinados de pesquisas e análise do JP Morgan e do Chase Manhattan estão hoje para a economia mundial como a CNN está para o noticiário: são os melhores para retratar com incrível rapidez o que está acontecendo debaixo de nossos olhos. Sua vantagem adicional é situar-se além de qualquer suspeita de pessimismo ideológico ou interesse de ver a economia global pegar fogo.
A frase acima faz parte da edição de 1º de outubro, na qual se sublinha que o atual declínio é notável pela amplitude e profundidade: em razão de fatores que afetam praticamente todo o mundo, quase nenhuma economia nacional crescerá neste ano mais do que no anterior. Dos 41 países examinados, o crescimento desacelerou em 38 e as três exceções têm pouco significado: o Equador, a República Tcheca e a Eslováquia.
No 2º trimestre, o PIB global estagnou pela primeira vez na década. Pior, prevê-se que se contrairá nos próximos três trimestres a produção das aproximadamente 30 economias avançadas da OCDE, que incluem os EUA, o Japão e a União Européia, isto é, todas as locomotivas capazes de puxar a economia mundial. Se houver erro na previsão, adverte o boletim, será provavelmente em subestimar o risco de desempenho ainda pior, em consequência do impacto dos atentados terroristas, entre outras influências difíceis de avaliar.
Não sei se algum dos leitores se lembra de “Umberto D.”, de Vittorio de Sica, que nunca alcançou a fama dos clássicos do neo-realismo. Há nele cena antológica em que um punhado de gente miserável e tiritando de frio se acotovela para tentar ocupar um lugarzinho debaixo de fugidio raio de sol que passeia e obriga todos a correr de um lado para outro. Nas previsões correntes, cada um busca o mesmo foco de calor: a esperança de que as vigorosas medidas de corte de juros e gastos governamentais ressuscitem a economia americana mais cedo e que, a partir da segunda metade do ano próximo, nós e os demais possamos nos aquecer sob esse lume. O raio de sol firmou-se um pouco mais com a decisão do presidente Bush de aumentar o pacote total de estímulo a US$ 130 bilhões, algo assim como de 1% a 1,5% do PIB. A não ser que a razão assista aos pessimistas, temerosos de que a soma mal dará para neutralizar os efeitos depressivos dos ataques.
Um promissor solzinho de primavera conseguiu também esgueirar-se entre as nuvens que toldam o céu da pátria neste instante. O tímido retorno do saldo comercial não será talvez suficiente para dar muito calor e o firmamento pode ainda fechar-se de novo como resultado da contração do comércio mundial e da queda da demanda de importações. Os números mostram, no entanto, o acerto do primeiro elemento indispensável para sair da crise: regime de câmbio flexível e flutuante aliado à prioridade absoluta para o comércio exterior. É preciso ir além, construindo o êxito futuro, na base não só do câmbio mas de substituição competitiva de importações, recusa de qualquer concessão comercial adicional nos próximos anos até ter a segurança de que saímos da zona de sombra, decidida expansão da capacidade exportadora mediante a atração de investimentos estrangeiros para esse fim.
Nada disso bastará, contudo, se não abandonarmos a perniciosa premissa de confiar num aleatório, traiçoeiro e perverso mercado financeiro para cobrir crescentes déficits de conta corrente e a permanente incapacidade de elevar a taxa de poupança doméstica. Se os golpes recebidos nos últimos anos não fossem o bastante para destruir as ilusões, o relatório do Institute of International Finance intitulado “Capital Flows to Emerging Market Economics” (20/9/01) deveria servir de pá de cal a essa persistente falácia. Da mesma forma que o JP Morgan, o instituto é mantido e dirigido pelos bancos privados, estando, assim, acima de qualquer suspeita ideológica. O documento principia com a frase seguinte: “Os fluxos líquidos de capital privado para economias emergentes de mercado deverão cair abruptamente neste ano para cerca de US$ 106 bilhões, em relação a US$ 167 bilhões no ano passado. O declínio reflete o aumento da aversão ao risco em sequência aos ataques terroristas nos EUA em 11 de setembro, assim como a forte desaceleração da atividade global e o impacto de crise anteriores na Argentina e Turquia”.
Não se pense que a recuperação das economias americana e mundial trará de volta esses fluxos de maneira automática. O mesmo citado instituto assinalou que, depois de ter atingido o pico de US$ 336 bilhões em 1996, os fluxos vêm caindo constantemente, até chegar a US$ 167 bilhões em 2000, ano santo sob outros aspectos, pois marcou o mais acelerado crescimento recente da economia mundial e expansão quase sem precedentes do comércio, que aumentou à taxa de mais de 12,5% em volume! Dizer se a tendência é permanente ou temporária é não tanto impossível _nada é permanente na vida_ mas irrelevante: mesmo temporário que dure dois anos seria excessivo. Parodiando Keynes, poderíamos declarar que, nesse curto prazo, estaríamos todos mortos.
Ernest Jones, o discípulo e biógrafo de Freud, narra como o mestre recusava deixar Viena após o “Anschluss” por julgar que seria um abandono. O amigo só lhe venceu a resistência ao citar o exemplo do oficial do Titanic que se salvara porque uma explosão o arremessara do tombadilho. Submetido a corte marcial, perguntaram-lhe severamente: “Em que momento o senhor abandonou o barco?”. Empertigado, o oficial contestou: “Perdão, sir, eu nunca abandonei o navio; foi o navio que me abandonou!”.
O nosso já está a ponto de abandonar-nos. Antes que o faça de todo, é bom começar a procurar um bote salva-vidas.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 07/10/2001.