Poucos dias antes de sua morte em janeiro de 1991, José Guilherme Merquior dizia que, após um século dominados pela busca da identidade nacional, deveríamos passar da problemática da identidade à da integração. Definia os objetivos desta última como tríplices: integração das massas em níveis mínimos de conforto e prosperidade, integração latino-americana e integração às correntes e ao dinamismo da economia globalizada.
“A articulação desses três níveis”, concluía Merquior, “vai determinar o que há de melhor nas preocupações e angústias mesmas do espírito brasileiro neste momento”. A escolha das palavras é significativa. A própria exposição que acabava de fazer, a da sucessão e tensão dialética entre os diversos “sonhos de Brasil”, entre as possíveis modalidades alternativas de “projetos nacionais”, mostrava bem que integrar-se o Brasil consigo mesmo e integrar-se com o resto da América ou do mundo não eram, necessariamente e em todos os casos, termos de perfeita complementaridade ou de harmoniosa adaptação.
Afinal, tinha sido José Guilherme quem lembrara que o projeto nacional de mais longa duração de nossa história, o liberal-oligárquico (1850-1930), o “Império dos Fazendeiros”, se tornara viável pela inserção do Brasil no comércio mundial da época. Isto é, a nossa integração na economia internacional como exportadores de produtos tropicais é que possibilitara a manutenção por tanto tempo da estrutura escravocrata e de latifúndio agrário, permanente fonte da desigualdade. Ou, em outras palavras, a integração externa como uma das causas da desintegração interna.
Não é por outro motivo que, nos anos 50 e 60, os “desenvolvimentistas” argentinos que apoiaram o presidente Frondizi olhavam com desconfiança a integração latino-americana, naquele tempo da Alalc ainda engatinhando. Preferiam primeiro integrar seu próprio país, incorporando efetivamente ao espaço nacional as vastas regiões despovoadas da periferia, a Patagônia sobretudo, de forte presença chilena. O mesmo argumento era evocado, em sua coluna de segunda-feira, por José Serra, o qual lembra que as nações latino-americanas são “sociedades em que a heterogeneidade estrutural e a pobreza estão longe de serem periféricas, como na Europa Ocidental, onde a integração federativa é a projeção da integração econômica e social já realizada em cada país”.
A questão é dessas que não podem deixar de merecer resposta cabal de parte do discurso integracionista latino-americano ou globalizador. Especialmente em casos como o nosso, onde o problema regional do Nordeste e da Amazônia ocupa posição central no debate constitucional, na história antiga e recente e no conflito de distribuição de recursos entre União, Estados e municípios. Não que seja impossível argumentar em favor da integração a um espaço maior como meio de acelerar o dinamismo gerador dos recursos necessários para integrar as áreas periféricas relegadas ao atraso. É preciso, porém, que se faça explicitamente a demonstração do como e do porquê a integração permitirá atingir tal objetivo.
Desafio ainda mais espinhoso me parece ser o de provar que a integração de tipo um e a de tipo três se reforçam ou se excluem. De fato, até que ponto a inserção do país no mundo globalizado facilita ou dificulta integrar suas massas em níveis superiores de bem-estar? Há ao menos três maneiras principais de colocar o problema. A primeira, sensível sobretudo nos países ricos, é indagar se o preço, para esses países, de manter níveis elevados de salários e proteção social não os condena a saírem perdedores na competição com os mais pobres, de custos sociais mais baixos. É, por exemplo, a questão da chamada “cláusula social”.
A segunda é perguntar se ainda seria possível, à luz das normas rígidas da Organização Mundial do Comércio, reproduzir hoje em dia o caminho seguido no passado pela maioria dos países, inclusive o Japão, a Coréia, Taiwan e a China, no sentido de aproveitar as oportunidades de crescer e integrar-se ao mundo via exportações, mantendo, ao mesmo tempo, o mercado interno relativamente fechado e protegido.
A última pergunta tem a ver com a própria essência da economia globalizada: é ela realmente capaz de integrar as massas por meio de trabalho assalariado estável como fazia a economia industrial dos últimos dois séculos? Com efeito, o que se vê por toda parte é o duplo fenômeno da precarização do trabalho e do desemprego em massa e de longa duração, a incapacidade de absorver quantidades crescentes de gente sobrando, do que o humorista argentino Landrú chamaria de “los venidos a más”. Quer se chame o fenômeno de “exclusão”, como na França, de “marginalidade”, na América Latina, de “underclass”, nos EUA; quer a polarização se faça entre os de dentro versus os de fora, os do centro versus os da periferia ou os do alto versus os de baixo, o resultado é sempre o mesmo: um número substancial não consegue ser integrado, por mais que tente ou queira. Daí as angústias e preocupações a que se referia Merquior. Daí também a necessidade, como ele queria, de um Estado “promotor” de estratégias de desenvolvimento e “protetor” das massas populares, capaz só ele, Estado e não o mercado, de tornar compatíveis o que, deixada a si própria, a economia condena à dissociação desintegradora.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 07/03/1998.