Ou, como dizem os americanos, o vencedor fica com tudo (“winner takes all”). Vem daí a centralidade da competição no exame da relação entre economia e moral. Se, de cada vez, um ganha e nove perdem, o que fazer dos nove perdedores? Condená-los à exclusão da desigualdade extrema? Não será isso garantir a autoperpetuação do problema, já que os filhos dos derrotados de hoje serão os vencidos de amanhã, aqueles que jamais terão uma chance efetiva de competir? O que conduz à indagação seguinte: é a competição tão desejável e absoluta que lhe devem ser subordinados valores humanos pertencentes a outras esferas da vida social?
A globalização não inventou a concorrência, mas certamente a exacerba. À medida que desaparecem as barreiras que no passado protegiam setores da economia nacional (como a indústria têxtil, por exemplo) ou davam condições mínimas de vida aos elementos mais débeis dentro de cada país (a legislação trabalhista, a Previdência Social), esses setores e elementos se vêem expostos a uma competição mais intensa. A justificativa da mudança é que desse modo se adquire muito mais eficiência, pois as pessoas são obrigadas a dar o melhor de si mesmas. Não é sem razão que, na Grécia, as competições atléticas eram chamadas de “jogos agonísticos”, da mesma raiz de agonia, quer dizer, combate. Não é à toa também que o estresse seja a doença moderna por excelência ou que a cultura alternativa principie por rejeitar a competição.
É inegável que a competição representa poderosa força para a inovação, a eficiente alocação de recursos, a neutralização dos monopólios e o aumento do bem-estar geral. Algumas sociedades e culturas são mais favoráveis do que outras a um grau intenso de concorrência e, por isso mesmo, estão mais dispostas a aceitar as desigualdades resultantes. É esse o caso dos Estados Unidos em relação à Europa Ocidental, ao Japão, aos asiáticos, a todos os que acentuam os valores da comunidade, em contrapeso à afirmação excessiva do indivíduo. Mesmo lá, contudo, não se admite competir com qualquer meio. Já não se pode mais celebrar contratos para a compra e venda de seres humanos ou para o transporte de escravos a partir da África, como era perfeitamente legal durante parte do século 19. São essas as “transações bloqueadas”, de que fala o filósofo americano Michael Walzer.
Há muitos outros exemplos de meios de concorrência que hoje consideramos fora dos limites de uma organização econômica civilizada. O trabalho forçado ou de prisioneiros, o das crianças, as jornadas de trabalho excessivamente longas ou em condições insalubres, os processos produtivos que destroem irremediavelmente o meio ambiente. É possível que o recurso a algumas dessas práticas aumentasse a eficiência da economia ou os lucros do empreendedores.
Sua proibição mostra, todavia, que há outros valores a salvaguardar, que nenhuma sociedade civilizada considera a competição e sua justificativa _os ganhos de eficiência que acarreta_ como objetivos absolutos que devem prevalecer sobre todos os demais valores humanos.
A dificuldade então é criar consenso sobre que outros valores merecem ser preservados ao preço de impor limites à concorrência e abrir mão, em consequência, de alguns ganhos de eficiência. Pois não deve haver ilusão. Existirá sempre um “trade off”, isto é, um toma lá, dá cá, entre os ganhos de eficiência derivados da competição e valores de esferas diferentes. Não tem sentido falar em maximizar os ganhos e minimizar as perdas produzidas pela globalização, já que o primeiro objetivo inviabiliza o segundo. Assim, é preciso escolher em cada situação concreta, de acordo com os valores de cada sociedade, entre mais eficiência ou mais solidariedade, mais lucro ou menos desigualdade.
Alguns dos problemas em que a concorrência desempenha o papel central na relação entre economia e moral são fáceis de identificar: a pobreza absoluta, a desigualdade crescente no interior dos países e entre eles, os desequilíbrios entre os sexos, a marginalidade e a exclusão, a destruição do meio ambiente, a precariedade e insegurança do emprego. Uma das causas principais do agravamento desses problemas é o poder desmesurado adquirido pelo capital em detrimento dos governos, do trabalho e outros fatores. A liberdade excessiva concedida ao capital permite-lhe mover-se por meio de fronteiras tornadas permeáveis e chantagear governantes e trabalhadores com a ameaça de mudar-se para os países que lhe ofereçam mais no leilão de favores (um pouco como ocorre no Brasil com a guerra fiscal entre Estados para atrair indústrias). A justificação é sempre a mesma: devido à pressão da competição, as empresas são obrigadas a incessantemente lutar por mais eficiência e maiores lucros em favor dos donos e acionistas. É cada vez mais claro que chegamos a uma daquelas fases na evolução do capitalismo em que necessitamos de novo ciclo de regulações globais a fim de impor limites à competição e restabelecer o equilíbrio de forças.
A futura regulação deverá temperar a lógica implacável da concorrência com a brandura compensadora da solidariedade. Não basta, como pretende a “Terceira Via”, criar oportunidades iguais para competir se os pontos de partida são enormemente desiguais para os afortunados, de um lado, e para os descendentes de escravos que a Abolição abandonou à própria sorte, do outro. Abrir a todos o circuito de Ímola não significa que uma bicicleta possa competir com uma Ferrari. É preciso, como se fez nos EUA com os negros ou se tenta fazer em favor das mulheres, uma ação afirmativa, isto é, uma discriminação positiva para ajudar os de baixo a participar da concorrência.
Dito isso, nada existe de mais contrário à lógica da competição que o espírito do Evangelho, o da parábola de filho pródigo ou, por exemplo, o do trabalhador que recebe pela undécima hora o mesmo salário dos que cumpriram a jornada inteira. Já aqui, porém, estaríamos no Reino de Deus, onde o excesso do amor transcende as exigências da justiça humana. Sem chegar a tais sublimidades, há um ponto sobre o qual podemos todos concordar: em última análise, toda a sociedade será julgada pela maneira com que trata seus membros mais fracos e vulneráveis. Em nosso próximo centenário, passará o Brasil nesse teste?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/06/2000.