A apertada vitória de Ricardo Lagos destruiu a ilusão de que o Chile se imunizara contra o populismo e passara a ser uma espécie de Nova Zelândia falando espanhol.
Dizia-se que as mudanças ocorridas desde o regime militar haviam criado consenso sobre a economia, superado a divergência entre a esquerda e o centro, transformando a política e as sucessões presidenciais em exercício monótono de continuidade.
De repente um neopopulista de direita estilhaça esse quadro idílico, mostrando que se pode quase ganhar a Presidência na base de programa simplista de soluções para todas as mazelas mesmo no país que mais avançou no continente em matéria de ajuste estrutural. Redescobre-se, no episódio, que afinal o Chile não difere dos seus vizinhos em relação à tentação sempre presente do populismo. Com morte não só muitas vezes anunciada, mas necrológio devidamente publicado em livros, o populismo renasce das cinzas com tal frequência e vigor que se fica tentado a ver nele como que a fórmula política latino-americana por excelência.
Basta olhar o mapa eleitoral da América do Sul, da Venezuela de Chávez ao Uruguai de Tabaré Váquez, para ver que a tendência se porta bem e tem capacidade insuspeitada de renovação, daquilo que os políticos italianos chamam de “transformismo” (aqui usado em sentido diverso do da vida pública peninsular). Pode ainda não ganhar, mas já dá susto.
Surpreende-se com isso apenas quem pensa que se trata de fenômeno histórico perfeitamente delimitado no tempo (os anos 40 e 50, por exemplo) e com nítido conteúdo político-ideológico. Assim, populistas seriam somente regimes como o peronista na Argentina ou o getulista no Brasil. Não custa lembrar, porém, que já naquela época ou logo depois figuras como as de Adhemar, Jânio, Jango, para só citar os mais notórios, testemunhavam a diversidade da espécie.
Julgou-se em certo momento que era animal em vias de extinção com o início, por volta de 1955, do ciclo de governos democráticos mais respeitáveis, reformistas e desenvolvimentistas, como foram os de Juscelino, Frondizi, na Argentina, o primeiro Eduardo Frei, no Chile, Lleras Camargo, na Colômbia, a Ação Democrática, na Venezuela. Sabe-se como isso tudo acabou.
Dobrada agora a página da crise da dívida e das ditaduras militares, alardeou-se que começara na década de 90 novo ciclo virtuoso de governos eleitos e reeleitos devido ao êxito com que jugularam a inflação e pareciam promover a reforma estrutural da economia segundo os modelos liberais e globalizantes. Acontece que, por uma razão ou por outra, as economias, quando não estão prostradas por crises financeiras que se amiúdam, não conseguem crescer mais que a metade apenas do que cresciam nos anos do populismo clássico. O desemprego alastra-se, os serviços sociais do Estado se deterioram e engrossa de novo, no fogo da frustração, o caldo cheiroso do populismo.
Ou melhor, neopopulismo, pois os representantes da família são extraordinariamente versáteis e cambiantes, ora de esquerda, ora de direita, nacionalistas dirigistas ou neoliberais globalizadores. Collor usou instrumentos populistas para promover a renovação da agenda política brasileira no sentido da modernização do “Consenso de Washington” e das questões ambientais (a Eco-92), indígenas (a reserva dos Ianomamis), de desnuclearização (o fim do projeto atômico militar). O governador do Rio também lançou mão de meios populistas para chegar ao poder, no qual vem sendo o primeiro homem de governo brasileiro a erigir o tema da segurança do cidadão em peça central do seu programa. Revela, desse modo, sensibilidade muito mais aguda que a dos políticos do “establishment”, de direita ou esquerda, mas presos aos temas de rotina.
Esses exemplos sugerem que, entre outras coisas, o populismo pode ser uma técnica, um estilo de ganhar eleições e governar, particularmente adaptada a países frouxamente estruturados, com partidos fracos, sociedades de massa recém-urbanizadas, ultra-sensíveis aos símbolos e ao carisma pessoal, às vezes caudilhesco. O conteúdo desse estilo, no entanto, pode variar infinitivamente.
Aliás, menos paralisado pelas convenções e alianças, o populismo tem um poder de iniciativa e inovação que falta aos outros. Que político tradicional, antes ou depois, seria capaz do gesto de Collor ao criar a reserva dos Ianomamis ou cimentar o sítio de experiências da serra do Cachimbo? Qual outro teria como Garotinho subido à Mangueira para pedir desculpas quando a polícia matou uma criança? Lembra alguém por acaso o que fizeram os presidentes por ocasião dos massacres da Candelária, dos Ianomamis, de Vigário Geral, de Carajás?
O populismo não só está aqui para ficar como não me parece merecer sistematicamente o estigma e o desprezo dos intelectuais e da esquerda, quase sempre com consequências nefastas para esta última. O sociólogo argentino Portantiero assinalou que o populismo latino-americano foi às vezes capaz de criar, a partir do alto, uma vontade nacional e popular que fundia reivindicações nacionais, de classe e cidadania, reatando com a memória coletiva e até, em alguns casos, com a tradição paternalista e caudilhista. Em contraste com o comunismo ortodoxo, que importava de Moscou, Pequim ou Tirana seu figurino ideológico e até seus mitos, o populismo ia buscar nas raízes endógenas da nacionalidade o material que, reelaborado, lhe permitia identificação mais próxima com o povo. Perón dissolveu a esquerda na Argentina, observa Portantiero. Em outros países foi também o populismo que monopolizou as classes trabalhadoras e deixou o comunismo a falar sozinho.
Estaríamos em vias de assistir à agonia de outro ciclo de ilusões na América do Sul? Chegaria ele ao fim desta vez não por causa da inflação, mas devido à semi-estagnação, ao crescimento anêmico, ao aumento do desemprego? Será um vento de mudança o que começa a soprar na Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, um desejo de substituição de governos desmobilizados, sem paixão moral pela justiça social, sem a energia transformadora que brota do povo, da cultura nacional? E, se de fato a fórmula atual se esgotar, quem tem melhores possibilidades de criar uma nova, a esquerda partidária, o neopopulismo de vários gêneros? Essa nova proposta será capaz de preservar a estabilidade macroeconômica, completar as reformas estruturais, mas conciliá-las, ao mesmo tempo, com a aceleração do crescimento, a geração de empregos, a redistribuição dos benefícios, a reconstrução do Estado e da economia nacionais contra as pressões desnacionalizadoras? Como se vê, há suficiente incerteza para dar várias vidas sucessivas ao populismo.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/01/2000.