“Assim é, se lhe Parece” completa 80 anos. Da mesma forma que a obra de Freud, o Cubismo, a música dodecafônica, é mais uma confirmação de que o instante criativo do século coincidiu com seus primeiros anos. Aliás, a teoria da relatividade restrita é de 1905 e a generalizada, de 1915.
Como o Einstein do universo moral, Pirandello mostrou que a realidade tem mil rostos, todos falsos, todos verdadeiros. O homem é “uno, nessuno e centomila” e nenhuma dessas caras coincide com a que ele mesmo reconhece no seu espelho interior.
É justo evocar Pirandello pouco depois da morte, no dia de Natal, de Giorgio Strehler, o diretor do Piccolo de Milão, a quem devemos montagens inigualáveis das suas peças, a última das quais, “Os Gigantes da Montanha”, assisti em Bolonha três anos atrás.
Mas é sobretudo em ”Cosí è se vi Pare” que o dramaturgo põe em dúvida o próprio conceito de identidade e radicaliza a impossibilidade de chegar à verdade. Pensei nisso ao ler na Folha, na semana passada, artigos sobre a supremacia americana publicados com dois dias apenas de intervalo. O primeiro, de 6ª feira, de Celso Pinto, se intitula “A diplomacia do dólar”. O segundo é o artigo de domingo de Roberto Campos cujo título diz tudo: “Hip, hip, hurra!… para o capitalismo liberal”. O objeto é o mesmo. As descrições, entretanto, diferem tanto entre si como as versões contraditórias e, ao mesmo tempo, convincentes que a senhora Frola e seu genro, o senhor Ponza, oferecem, na peça, a propósito do outro e de si próprios.
Resistindo à tentação de entrar no jogo, prefiro sugerir que mesmo os americanos não estão muito seguros sobre como interpretar uma realidade tão complexa como escorregadia. Qual seria, por exemplo, a pior ameaça à atual prosperidade? No paraíso da economia de mercado, é natural que se olhe para os dois momentos mais graves de falhas do mercado: 1929 a 1987. O problema é que o comum colapso da Bolsa teve em cada episódio consequências opostas.
No primeiro caso, o reflexo ortodoxo de cortar o crédito provocou deflação e está na raiz da depressão dos anos 30. No segundo, a liquidez rápida e talvez excessiva é responsabilizada pelo rebrote inflacionário e posterior recessão da qual os EUA só emergiram em 1991.
Esperam todos que a charada seja decifrada pelo presidente do Fed, Alan Greenspan, a personalidade mais importante da economia mundial. Até data recente, a maioria dos analistas temia mais a volta da inflação em consequência da expansão rápida demais, com pleno emprego e pressões salariais altistas devido ao desaparecimento do “exército de reserva” dos desempregados. O próprio Greenspan asseverou que o ritmo era insustentável e só não elevou os juros em razão da crise asiática. Esta última poderia até ter o efeito benigno de amortecer o crescimento naturalmente, sem tocar nos juros, numa dessas aterrissagens suaves que arrancam aplausos dos passageiros.
Para isso, porém, era indispensável que a aeronave ultrapassasse logo a zona de turbulência. Ora, à medida que trancos se sucedem a sacolejões nesses mergulhos no vácuo que nos trazem o coração à boca, os viajantes começam a se entreolhar inquietos. Dentre os sinais de perigo identificados pelos controladores de vôo, destaquemos o seguinte:
1) o crescimento mundial deve sofrer impacto severo, pois, desde 1991, os asiáticos têm respondido por metade do aumento do produto internacional;
2) como a Ásia representa 26% das exportações mundiais (contra 17% dos EUA e 8% do Japão), as desvalorizações das moedas asiáticas e o reforço da competitividade reduzirão os lucros de empresas que competem com seus produtos ou vendem em seus mercados;
3) os americanos sofrerão um efeito de pinças, de um lado perdendo mercados, do outro assistindo à rápida expansão do déficit comercial, no momento em que a negação do “fast track” revelou a baixa tolerância existente para a penetração de importações;
4) nesse ambiente, será difícil às empresas americanas sustentar, como nos últimos cinco anos, aumentos de lucros da ordem de 10% ao ano, se a economia passar a se expandir só a 2% ou pouco mais;
5) isso vai agravar ainda mais a sobrevalorização das ações em Wall Street, que já igualou ou superou todos os picos do passado, quer pelo critério da relação cotações/lucros (entre 1871 e 1992, a média foi de 13,7, agora é de 24), quer pelo chamado índice Tobin Q, segundo o qual atingiu-se a maior valorização desde 1925.
É inevitável, assim, que, cedo ou tarde, a Bolsa passe por uma correção muito mais drástica que a de outubro passado. Na última grande queda livre, a da segunda-feira negra, 19 de outubro de 1987, o Dow Jones perdeu 23% do valor. Desde então, o índice cresceu mais de 200% em termos nominais. No dia da crise, Greenspan, que sucedera a Paul Volcker apenas dois meses antes, teve de cancelar um discurso em Dallas e voar de volta a Washington num jato presidencial. Diante do perigo do colapso do crédito na hora de perdas catastróficas para os corretores, o Fed assegurou em comunicado histórico, que garantiria a liquidez do sistema. A injeção de dinheiro fez o resto: em poucos dias, a confiança se restabeleceu. Foi tão instantânea a cura que os críticos se apressaram a dizer que o perigo nunca existira. Tudo não passara de reação precipitada que trouxe de volta a inflação.
De olho na lição que se queira tirar desse precedente, já há muito financista respeitável advertindo que o risco agora é de uma deflação como resultado da combinação dos seguintes fatores:
a) a queda de valor dos ativos já é realidade na Ásia;
b) o dólar valorizado e a competitividade asiática vão inundar de mercadorias mais baratas o mercado americano onde hoje os importados chegam a 33% dos bens consumidos (contra só 15% em 1980);
c) as “commodities”, dentre as quais o petróleo, estão em baixa;
d) os bônus do Tesouro de 30 anos mergulharam a juros anuais de 5,7%;
e) muitas indústrias estão com sobrecapacidade, produzindo mais que o mercado consome.
Em meados de 1996, só duas instituições internacionais soaram o alarme: o BIS de Basiléia (Bank of International Settlements), o qual, ecoando Keynes, lembrou que o dever dos bancos centrais era prevenir não só a inflação, mas também a deflação e a Unctad, que retomou e ampliou o tema em seu relatório.
Hoje a deflação é assunto diário de Wall Street, dos noticiários da CNN e dos jornais populares. Já se começa a suspeitar que se estaria às portas da recessão e do fim do longo ciclo ascendente iniciado nos EUA em 1991. Nessa ótica, o Fed deveria, em sua próxima reunião, reduzir e não aumentar os juros como a maioria dos observadores previa. Até agora, Alan Greenspan tem demonstrado rara combinação de prudência e audácia. Sua hora da verdade está chegando, a hora de decidir, de acordo com Pirandello, o “trágico conflito imanente entre a vida que corre e se altera sem cessar e a forma que a fixa, imutável”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/01/1998.