A brutalidade do retrocesso no Oriente Médio pode conduzir à mais grave perda de confiança no sistema internacional desde a queda do Muro de Berlim, há dez anos. Vindo logo após os choques da triplicação do preço do petróleo, do desabamento do euro, dos sustos cada vez mais frequentes da Bolsa em Wall Street, seu impacto pernicioso é capaz de alterar de modo perdurável as expectativas do advento de um círculo virtuoso de paz, estabilidade e crescimento.
Quando ruíram as muralhas da Guerra Fria, não foi só, após 70 anos, o comunismo soviético que acabou, transformando radicalmente a estrutura do poder mundial e abrindo o caminho à solução de problemas congelados. Com o fim da União Soviética, derretia-se a última era glacial que paralisava numa rigidez cadavérica todos os grandes impasses internacionais. Da luta no Afeganistão à guerrilha na América Central, do apartheid na África do Sul à guerra civil no Camboja, da divisão da Alemanha à autodeterminação de Timor Leste, o degelo criava a ilusão de que ou a racionalidade ou o poder incontrastável dos Estados Unidos acabariam cedo ou tarde por consertar tudo o que andava torto no mundo.
Mesmo os episódios de ocasional rebeldia e recaída na violência _a Guerra do Golfo, os conflitos na Bósnia, no Kosovo, a dissonância da Iugoslávia_ revelavam-se afinal não mais do que o esperneamento inútil da vítima que se debate para terminar por submeter-se ou sucumbir. Pouco a pouco, os rebeldes foram sendo reduzidos à impotência (Saddam Hussein), obrigados a deixar a cena (Milosevic, os sandinistas) ou a moderar a ambição de subir às barricadas e incendiar o mundo (Fidel Castro). O coronel Gaddafi, da Líbia, aceita que seus funcionários sejam julgados por terrorismo e oferece-se como mediador humanitário nas Filipinas; os fundamentalistas não mais ameaçam assassinar Salman Rushdie; até a impenetrável Coréia do Norte, último reduto da “edificação do socialismo num só país”, rende-se ao esboço da reconciliação com o sul, aos investimentos sul-coreanos, culminando espantosamente com a visita de Madeleine Albright e a projetada do próprio presidente Clinton!
A revolução decididamente passou de moda, e o que sobra em matéria de rebeldia são figuras romanescas, como o subcomandante Marcos, misteriosos bandidos do Cáucaso, como no tempo em que o jovem oficial Tolstói combatia na Tchetchênia, vagos grupúsculos nas selvas filipinas. As ameaças de alguma periculosidade provêm não mais de países revolucionários (que não existem), mas dos obstinados terroristas bascos, de figuras esparsas, como Bin Laden, de refugiados nas escabrosas montanhas do Afeganistão ou do misto de guerrilha com narcotráfico nas remotas regiões colombianas. Contra esses, apresta-se a agir a esmagadora máquina repressiva dos serviços secretos. O resto _horrores africanos, atrocidades étnicas na Indonésia e Sri Lanka_ corre por conta da quota de indiferença e tédio que gregos e romanos outrora reservavam aos bárbaros, a fim de que estes pudessem distrair-se com suas barbaridades.
Israel é diferente. Das questões abertas há meio século, é a única que ameaça engolfar toda uma região estratégica, que não deixa indiferente 1 bilhão de muçulmanos espalhados pelo planeta, pesa decisivamente na vida política norte-americana e tem potencial, via petróleo, para causar estrago grande na economia global. As outras _Taiwan, a disputa da Caxemira_ não possuem a mesma envergadura nem comparável incidência econômica.
Por muitos aspectos, o conflito israelense-árabe é o mais explosivo problema pendente do nosso tempo. As negociações iniciadas em Oslo davam a impressão, se não de desfecho feliz próximo, ao menos de um processo em marcha, isto é, uma sequência de passos naquela direção. De repente, o processo se inverte, vira retrocesso, passa-se a caminhar para trás. Evidencia ao mesmo tempo os limites do poder americano. Em nenhum outro problema empenhou-se tanto pessoalmente o presidente dos Estados Unidos, o homem de maior poder do mais poderoso país do universo. Tentou com tudo o que tinha à mão, não bastou e agora até a esperança se desfaz.
Ora, se faltar, em horizonte razoável, a esperança de paz que gradualmente havia modificado as estratégias de países árabes, como o Egito e a Jordânia, no sentido da normalização com Israel e empurrava aos poucos o Líbano e a Síria no mesmo rumo, o que sobra aos governos ou às massas a não ser a lógica do confronto? Ainda queremos esperar que por algum milagre se salve o essencial do processo, que é a credibilidade da esperança. Se isso não ocorrer, será realmente a primeira vez em dez anos que um desafio se mostra absolutamente impermeável à esperança. Essa perda da confiança de que tudo será melhor amanhã está no âmago de todos os abalos recentes: o euro, o petróleo, a Bolsa. Sem esperança, veremos no próximo artigo, o sistema internacional não pode produzir nem segurança política nem crescimento econômico.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/11/2000.