Na cerimônia de rendição após a derrota em Yorktown, que pôs fim à Guerra da Independência americana, a banda inglesa tocou uma marcha intitulada “The world upside down” (“O mundo de cabeça para baixo”). Não parecia verossímil que, num mundo governado pela lógica das leis físicas de Newton, o poderoso império britânico se visse humilhado por um improvisado exército de colonos, é verdade que decisivamente ajudado pela esquadra francesa.

Recentemente, um comentarista inglês observava que os EUA tinham virado a lógica de cabeça para baixo, ao combinarem sua hegemonia político-militar de cunho cada vez mais unilateralista com uma dependência perigosa e crescente em relação a fluxos financeiros provenientes dos governos _não mais dos investidores privados_ do Japão, da China e de outros asiáticos. Lembrava o analista que tal situação era simetricamente a oposta da que prevalecera no anterior episódio de livre circulação de capitais antes da guerra de 1914. Naquela ocasião, a potência hegemônica _o Reino Unido_ produzia imensos superávits em conta corrente e exportava capital para o resto do mundo, e eram os demais, entre eles o governo brasileiro, que dependiam financeiramente da boa vontade dos britânicos. Hoje em dia, o paradoxo é que o “Império”, como gostam de chamá-lo os adeptos de teorias um tanto superficiais, só consegue financiar seu imperialismo graças à “generosidade” das fontes mais inesperadas e estranhas, como a oficialmente ainda marxista-leninista República Popular da China.

Esse é apenas um dos aspectos que alimentam o coro gigantesco, quase unânime, de economistas, bancos, instituições, a clamar: “É insustentável! Não dá para manter! Cuidado, a hora do julgamento está próxima!”. O problema é que o coro vem bradando essas advertências há anos e não só a profecia não se cumpre mas acontece o contrário. O artigo acima citado do comentarista inglês terminava com o repetido lugar-comum de que tudo que é bom demais para ser verdade termina, cedo ou tarde, em lágrimas. Isso se aplicaria ao déficit americano, invariavelmente acompanhado do adjetivo “insustentável”. Os riscos aumentavam, o dólar poderia arrebentar-se, os mercados de títulos financeiros reagiriam inviabilizando a política orçamentária ianque, a economia mundial entraria em estado de choque.

Essas perspectivas sombrias se afiguravam plausíveis na data de publicação do artigo, em 29 de dezembro de 2003, quando o déficit em conta corrente dos EUA atingia já o nível sem precedentes de 5% do PIB. Um ano depois, esse déficit chegou a 5,6% e continua subindo, conforme se viu nos últimos dias. Não obstante, 2004 foi aparentemente o ano de melhor crescimento para a economia mundial em quase três décadas, com os EUA liderando os ricos, a uma taxa de 4,4%, a China atingindo 9,2%, em lugar dos 7% desejados para esfriar a economia, e o comércio se expandindo a 9,5%. Nada mal para uma fase que assistiu à desastrosa deterioração da ocupação do Iraque, ao aumento do terrorismo e ao salto no preço do petróleo.

Diante disso, previsivelmente, o ano começa de novo com editoriais e artigos cujo tom foi dado pelo título do escrito para “The Guardian”, de 1º de janeiro, por Joseph Stiglitz: “This can’t go on forever _so it won’t” (“Isso não pode continuar para sempre _e por isso não continuará”). Todos dizem coisas parecidas, variações em torno de um tema central: a prioridade do ajuste dos macrodesequilíbrios da conta corrente global e o papel da desvalorização do dólar nesse processo. Complementa esse debate principal um outro sobre o inevitável aumento dos juros, o impacto que terá sobre mercados emergentes como o nosso e, acima de tudo, sobre o voraz apetite de gastar dos consumidores americanos, em última instância a roda que faz girar a máquina do mundo. Essa máquina precisa de óleo e o preço deste se mantém alto e cheio de incerteza, o que joga lenha na fogueira dos preocupados com a volta da incipiente inflação. Afinal, apesar da enganadora tranquilidade do índice oficial, os preços da gasolina subiram nos EUA 47,5%, os das matérias-primas, 25,9%, e os das mercadorias de supermercados, 6,1% em 2004.

Alguns sinais incompletos de que se esboça o ajuste são perceptíveis. Um deles tem a ver com a desaceleração do crescimento de importações por parte da China, que, no ano passado, caiu a cerca de 25%, contra quase 39% no anterior. Outro indício é, obviamente, o da depreciação do dólar, embora seja mais ambíguo. Desde novembro de 2000, o dólar perdeu 38% do valor contra o euro. Essa cifra se reduz a apenas 16% quando se considera o índice ajustado ao comércio do Fed (a partir do início de 2002). A diferença de mais de 20 pontos se deve basicamente à compra maciça de dólares pelos governos da Ásia para evitar a valorização de suas moedas. O resultado líquido é que transferem, assim, o custo do ajuste aos europeus, em primeiro lugar, mas também a países como o nosso, que ainda não conseguem se defender desse mecanismo perverso.

Num mundo ideal, a solução seria por meio da cooperação global. Na vida tal como ela é, não há muita chance de que a China ou o Japão deixem de fazer o que sempre fizeram. Conforme escreveu um editorialista, os americanos e seus parceiros asiáticos estão plenamente satisfeitos com esse tipo de lógica da transferência. Em fim de contas, por que não estariam se ele permite aos primeiros ter, ao mesmo tempo, manteiga e canhões, dando aos segundos a possibilidade de continuar a abarrotar alegremente o mundo com suas exportações? A única razão válida que se invoca em contrário é que isso não pode durar e o melhor é mudar antes do dia do julgamento. Pode ser mas também é possível que americanos e asiáticos sejam pragmaticamente seguidores do nosso Vinícius: já que não é eterno, que seja infinito enquanto dura.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/01/2005.