Lembram-se de quando a China era descrita como a “cortina de bambu”? Pois bem, a mesma palavra vem de novo a ser aplicada ao país. Só que agora no sentido de que os chineses estariam levantando uma cortina tecnológica a fim de impedir o ingresso de importações americanas.

Artigo defendendo essa tese foi recentemente publicado no “Financial Times” por um dos mais influentes senadores dos Estados Unidos, Ernest Hollings, e Charles McMillion, presidente da empresa MBG Information Services. Dizem os autores que os “EUA enfrentam com a China déficits que se agravam de forma aguda no comércio de produtos cruciais de tecnologia avançada”. As perdas estariam se “acelerando e atingindo novos produtos, mesmo após as reduções de tarifas e promessas oficiais quanto à proteção da propriedade intelectual e o fim das exigências de transferência de tecnologia”.

Como teria sido possível passar tão rapidamente do primitivismo da cortina de bambu à sofisticação da cortina de tecnologia? A explicação, segundo a mesma fonte, é simples. “Um recente estudo do Departamento de Comércio concluiu que, a fim de poder ter acesso à força de trabalho barata ou ao mercado da China, é necessário transferir importantes tecnologias e pesquisa científica de ponta a companhias chinesas.” Em outras palavras, o investimento estrangeiro tem de oferecer uma contribuição ao avanço tecnológico chinês.

Três dos setores mais visados seriam os computadores, as telecomunicações e o aeroespacial. Já em 1990, os EUA perderam para a China o saldo que tinham em computadores e componentes, importando hoje sete vezes mais do que vendem àquele mercado. Dez anos atrás, o mercado chinês era dominado pela Compaq e outras marcas estrangeiras, agora deslocadas por empresas locais como Legend, Tontru e Great Wall.

Igualmente impressionante é o panorama em telecomunicações, em que os americanos não só não conseguem exportar a Pequim um só telefone portátil como já importam US$ 100 milhões anuais do produto chinês. “A China exerce controle total de suas redes telefônicas, tendo recentemente cancelado um grande contrato com a Qualcomm.” Até pouco tempo atrás, a Motorola, a Ericsson e a Nokia forneciam 85% dos aparelhos de telefonia portátil da China. Em novembro do ano passado, o Ministério de Informação e Indústria da China impôs cotas de importação e produção aos fabricantes de telefone portátil e concedeu apoio substancial a nove empresas nacionais. Espera-se que as nove elevem sua participação no mercado doméstico dos atuais 5% a 50% em cinco anos.

Selecionei esses dois exemplos porque nesses setores o desempenho brasileiro foi justamente o oposto. Passamos de um saldo significativo em produtos eletrônicos e de telecomunicações a um déficit setorial que anda por volta de US$ 6 bilhões a US$ 7 bilhões por ano. Junto ao déficit em petroquímica e química, mais ou menos comparável, ele forma um dos caroços duros do déficit comercial quase estrutural que o Brasil exibe.

Venho sugerindo nesta coluna que o país precisa de política capaz de influenciar os investimentos estrangeiros a fim de que eles não se concentrem apenas no mercado interno e nos ajudem a aumentar a capacidade de gerar exportações e melhorar seu conteúdo tecnológico. Há entre nós muita gente cética sobre a possibilidade de empreender algo do gênero. Lembram o insucesso da Lei de Informática ou de outras políticas industriais do passado e generalizam a condenação a todo intento de aplicar estratégia qualquer com vista a adquirir maior competitividade. Alguns chegam a erigir essa atitude em nova ideologia ultraliberal de recusa de todo esforço deliberado de conquista de vantagens competitivas.

Ora, é curioso como, a esse respeito, o senador Hollings e Charles McMillion nem cogitam contestar a possibilidade de um país conseguir adotar políticas inteligentes para aprimorar sua competitividade tecnológica. O que eles lamentam é precisamente o fato de que essas políticas se têm revelado eficientes demais para os interesses exportadores dos EUA, que sempre levaram vantagem no comércio de produtos de tecnologia avançada, em que tiveram, na década de 90, saldo global de US$ 278 bilhões. Em relação à China, no entanto, devido ao êxito das condicionalidades chinesas, os americanos perderam o excedente tecnológico desde 1995, sofreram no ano passado déficit de US$ 3,2 bilhões (de um déficit bilateral total de US$ 68,7 bilhões), saldo negativo esse que pode chegar a US$ 5 bilhões em 2000.

Nisso, aliás, a China está reproduzindo o que fizeram, em seu tempo, o Japão e a Coréia do Sul, adquirindo tecnologia, e Taiwan, Cingapura e Malásia, que utilizaram, em parte, os investimentos estrangeiros, mas acompanhados por requisitos de associação ou transferência. O espetacular, no caso chinês, é o êxito que levou o país de uma exportação insignificante de US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões, em 1979, a US$ 195 bilhões, em 1999 (no primeiro trimestre deste ano, as exportações chinesas cresceram 38%!).

É evidente que a China só pode aplicar certas políticas porque não é ainda membro da OMC e que seguramente alguns ou muitos desses métodos não são adequados para o Brasil. O exemplo indica, porém, que não é impossível encontrar maneiras de aumentar a competitividade e multiplicar as exportações mediante políticas de qualidade, desde que se disponha de um setor público competente, capaz de realizar um projeto nacional. Em contexto distinto, o general De Gaulle dizia que, a fim de garantir que o Exército fosse apenas o instrumento, e não o amo do Estado, era primeiro preciso que houvesse um Estado. O mesmo vale aqui: não é impossível definir e aplicar políticas eficazes de competitividade, sempre que exista um Estado, como vem demonstrando o ministro Ronaldo Sardenberg no setor de ciência e tecnologia.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/09/2000.