Tivemos em Genebra uma semana cheia: Clinton, Blair, Fidel, Mandela e o nosso presidente. A festa dos 50 anos do Gatt deu-nos tudo a que tínhamos direito, inclusive pancadaria da polícia, mobilização do Exército suíço e gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
Um dos momentos mais interessantes foi domingo na OIT (Organização Internacional do Trabalho). Por iniciativa da Federação dos Sindicatos Livres, realizou-se lá um debate sobre globalização, comércio e direitos trabalhistas.
Falaram de início o diretor da Organização Mundial de Comércio, Ruggiero, e o diretor da OIT, Hansène. Como o ambiente oscilava entre o torpor e a modorra de uma manhã dominical, resolvi dar uma sacudidela no auditório. A fim de evitar mal-entendidos sobre a globalização, anunciei que leria uma descrição insuperável do fenômeno. Sem dizer o que era, li então algumas passagens do “Manifesto Comunista”, não só as que aqui citei no sábado passado, mas outras, tanto ou mais proféticas. À medida que se dava conta de que aquelas palavras tinham sido escritas há um século e meio por um jovem Marx de 29 anos, a sala se eletrizava.
É extraordinário como Marx atirou no que viu e acertou no que não viu. Como acentuou o professor Hobsbawm, ele não descreveu a sociedade existente em 1848, mas sim o processo pelo qual o mundo estava destinado a ser “logicamente transformado” pelo capitalismo, previsão jamais igualada, antes ou depois. Onde o “Manifesto” se enganou foi em julgar inevitáveis as condições criadas pela Revolução Industrial e que prevaleciam naquele momento: a pauperização espantosa dos operários, a polarização entre uns poucos capitalistas e a multidão de proletários, que deveria “fatalmente” acarretar o colapso final do capitalismo.
Nada havia de absurdo em tal dedução. Era o que se concluía da leitura de romances como “Oliver Twist”, de Dickens, ou “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Os economistas liberais daquela primeira fase da globalização afirmavam, como os de hoje, que todas aquelas consequências repugnantes eram inelutáveis. Os políticos repetiam o mesmo. Um célebre primeiro-ministro e historiador francês da época, confrontado com a queixa de que a pauperização não permitia à maioria qualificar-se como eleitor, deu aos reclamantes o seguinte conselho: “Enrichissez-vous!” (Enriquecei-vos!).
Por fortuna deles e nossa, as mulheres e homens daquele tempo não se resignaram ao suposto “inevitável”. Organizaram-se em sindicatos e iniciaram a luta penosa que iria reduzir a jornada de trabalho das 14 horas para as 8 horas atuais, permitir a obtenção de melhores salários, férias, seguro contra acidentes, aposentadoria e o fim da exploração dos menores. No espaço entre a teórica igualdade política e jurídica dos cidadãos, de um lado, e a monstruosa desigualdade econômica de fato, do outro, criou-se a teia de direitos que constitui o domínio do social. Foi isso que salvou o capitalismo do destino apocalíptico esperado por Marx e não uma inexistente capacidade de autocorreção do sistema.
Hoje algumas dessas medidas são questionadas como incompatíveis com as necessidades de produção da nova etapa da globalização. De novo se assevera que todas as características mórbidas que acompanham esta fase são igualmente inevitáveis, que não há escolha e nada há a fazer contra o aumento da desigualdade, da insegurança de emprego, da marginalização.
O conformismo como política é receitado não só para cada país internamente, mas para as relações econômicas entre eles. Nesse sentido, foi instrutivo comparar os discursos das comemorações do Gatt. O do presidente Fernando Henrique Cardoso foi realista, condenando a continuação da liberalização comercial a qualquer preço e chamando a atenção para a persistência do protecionismo dos ricos em agricultura, por exemplo. Situou-se numa posição moderadamente intermediária.
Num dos extremos, à direita, tivemos os discursos de Clinton e Blair, menos expressão das correntes partidárias a que se filiam os dois políticos do que da tradição cultural e histórica do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Representantes dos países campeões do livre comércio e do liberalismo econômico, no passado e no presente, os dois se mostraram coerentes em insistir, quase exigir, mais acelerada liberalização, competição mais exacerbada, sem consideração das desigualdades de estágios de desenvolvimento, da capacidade de competir efetivamente.
No outro extremo da escala se encontraram os dois únicos “heróis” que foram capazes de levantar a sala em prolongada ovação: Fidel, o herói da guerrilha e da revolução; Mandela, o da libertação de um povo, magnânimo no sofrimento e na reconciliação. Talvez os únicos, ao lado do papa atual que, independentemente do juízo que deles se faça, são estrelas solitárias, personalidades de forte coloração num mundo de meias-tintas. Fiéis a uma vida de luta contra situações também aparentemente insuperáveis, ambos afirmaram o primado da vontade do homem contra a pretensa inevitabilidade dos processos econômicos, a possibilidade de reagir e de escolher, a exigência de justiça e equilíbrio nas relações econômicas mundiais. Fidel ficou um tanto absorvido, como era natural, no problema do bloqueio contra Cuba. O pronunciamento de Mandela foi soberbo na denúncia dura, de peito aberto, contra a arrogância e injustiça dos poderosos, no quase desafio com que se referiu às pressões injustificadas sobre os países em desenvolvimento.
Ficou de tudo isso a curiosa impressão de que os resignados ao “inevitável” da globalização, os crentes no determinismo das novas relações de produção criadas pela mudança tecnológica, é que estão, como o personagem de Molière, fazendo um marxismo ordinário, de terceira classe, sem saber. Pode-se fazer melhor? É possível, sem cair na utopia ou na retórica, propor alternativas viáveis para o projeto interno e a integração ao processo global? É o que começaremos a explorar na próxima semana.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/05/1998.