Havia, nos tempos do imperador, muita gente “respeitável” que vivia como parasita do dinheiro trazido pelos escravos de aluguel ou de ganho.
Quituteiras, alfaiates, sapateiros, só guardavam, do trabalho feito para fora, o pouco que escapava do olho vigilante do dono. Não é muito melhor a situação de países escravos do mercado financeiro: dão duro para produzir saldos comerciais crescentes a fim de pagar a dívida que cresce mais depressa ainda. Para sentir a diferença, basta pensar num país como a Índia. No ano passado, cresceu 6%, com déficit público raspando os 10% do PIB, somados o do governo central aos dos Estados. Apesar disso, não teve de tremer diante da cara feia do FMI, ou de Wall Street, por uma simples razão: é uma nação de verdade, livre e independente do cativeiro. Quanto às outras…
Em contraste, na América Latina, a maioria dos países tem superávit primário no Orçamento. Só que não crescem, ou melhor, o que mais cresce nessas terras sáfaras é pobreza (44% da população) e desemprego (quase 11%). O crescimento que é bom foi negativo por habitante nos seis anos de 1997 a 2002. No ano passado, o PIB teve leve recuperação, de 1,5%. Em termos “per capita”, contudo, é ainda inferior ao que era em 1997.
Exportou-se como não se fazia havia muito tempo, bem mais do que se importou. Mas, como diz o recente relatório da Cepal, o saldo comercial, em ambiente de estagnação econômica, indica sobretudo a fraqueza do gasto interno, consumo e investimento. Não se consome porque as pessoas ou não têm emprego ou sofrem de aguda erosão dos rendimentos do salário. O investimento e a formação bruta de capital, condições do crescimento futuro, são bem menores do que cinco anos atrás, quando já não eram grande coisa.
Além do saldo comercial fora do comum (US$ 41,1 bilhões), ingressaram como transferências, em especial as remessas dos imigrantes obrigados a expatriar-se para trabalhar no estrangeiro, cerca de US$ 33,1 bilhões, o que dá ingresso líquido de US$ 74,2 bilhões. A soma foi o suficiente para cobrir o déficit em serviços, fretes, seguros, gerando, pela primeira vez em 50 anos, um excedente em conta corrente (US$ 6 bilhões). Esse tipo de superávit implica aumento de reservas, conforme todos desejaríamos, dado o nível modesto de recursos acumulados nessa área, ou contribui para a saída de capitais. Infelizmente, foi essa indesejável hipótese a que se concretizou.
O investimento estrangeiro direto continuou a cair e houve também saídas de outros fluxos financeiros, empréstimos bancários em primeiro lugar. As remessas totais de lucros e dividendos de empresas estrangeiras, mais os pagamentos de juros, alcançaram US$ 54,8 bilhões. Em conseqüência, pelo quinto ano consecutivo, o continente sofreu uma transferência líquida de recursos para o exterior. Em 2003, a transferência foi de US$ 29 bilhões, e, no quinqüênio, a saída acumulada de dinheiro corresponde a 5% do total da riqueza produzida. É o mundo de cabeça para baixo: os superávits dos miseráveis financiam os déficits dos ricos, uma região agudamente carente de capital exporta dinheiro para os que o esbanjam.
Desse modo, não obstante o heróico esforço para gerar excedente primário no Orçamento e no saldo comercial, a dívida externa bruta da América Latina e do Caribe aumentou 2,4%, chegando a US$ 744 bilhões. O desempenho foi pior que em 2001 e 2002, quando se havia logrado redução nominal. O relatório faz, a esse respeito, uma advertência salutar: “A magnitude do saldo da dívida é um fator estrutural preocupante e (…) as dificuldades para administrá-lo aumentarão à medida que as taxas de juros internacionais e os prêmios de risco se elevem no futuro”.
Em outras palavras, o que a Cepal sugere é que a melhora nos balanços externos obtida graças ao desempenho exportador e às remessas de imigrantes pode ser facilmente anulada por choques negativos nos mercados financeiros, que resultem em aumentos de juros, da taxa de risco, ou em retirada de capitais, tudo o que tem acontecido com freqüência inquietante. A desgraçada orientação imposta à economia latino-americana pelos que apostaram na globalização financeira e perderam produziu uma dependência perversa em relação a capitais externos sem nenhuma confiabilidade. Essa perigosa dependência alterou, por seu turno, a estrutura da composição, tanto do balanço externo como do orçamentário. Isso se deu porque o serviço da dívida se tornou proporção cada vez maior das despesas do governo e dos pagamentos de contas correntes, como vimos acima. Os esforços para reduzir as despesas do governo ficam, assim, muito mais difíceis porque os pagamentos do serviço da dívida são determinados por fatores internacionais fora do controle dos governos.
É por essa razão que as políticas tradicionais de ajuste baseadas na compressão forçada da demanda tendem a ser ineficazes por não terem impacto direto nos gastos orçamentários com o serviço da dívida. Além disso, essas políticas podem ser até contraproducentes se, ao ocasionarem o declínio do crescimento, acabarem por provocar, nos mercados internacionais, expectativa pessimista quanto à possibilidade de que o serviço da dívida continue a ser pago.
Nesse círculo infernal, mesmo fatores em si desejáveis como a expansão das exportações e o saldo comercial ou em conta corrente não acarretam efeitos positivos suficientes. Uma coisa é dispor desses elementos nos países asiáticos, onde eles se deram em contexto de crescimento acelerado da produção e do emprego. Outra, muito diferente, é o significado que assumem num clima de estagnação, desemprego e transferência negativa de recursos, como na América Latina.
Não se sai do dilema com a radicalização das políticas que nos reduziram ao cativeiro. Nos tempos da escravidão, o escravo de ganho conseguia às vezes pôr de lado alguma coisa para comprar a liberdade ou era alforriado no testamento do amo. Como a última hipótese não se coaduna com os impiedosos amos de hoje, só nos resta, como escravos de aluguel, conquistar a alforria com ações decisivas de ruptura do estado servil.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 25/01/2004.