Este jovem século mal aprendeu a andar e já sobreviveu a dois terremotos monetários: o do lançamento do euro (1999), acompanhado de sua queda fulminante e da valorização de quase 40% do dólar, seguidos pela desvalorização de 50% deste último, a partir de 2001. Estamos naquele momento da montanha-russa em que fechamos os olhos e seguramos com força na barra, pois o carro do dólar vai começar a despencar de novo!
Safanões dessa brutalidade entre as duas principais moedas, no intervalo de cinco anos, dizem muito sobre a profunda mudança no espírito do século 21 em relação ao anterior. O Novecentos se inaugurou firmemente ancorado na estabilidade do ouro, símbolo sólido do sonho burguês-liberal em que tudo seria, para sempre, “ordem e beleza/luxo, calma e volúpia”… A nostalgia da doçura de viver da ordem burguesa (para os burgueses, é claro) foi tão poderosa que resistiu a quase tudo, ao dilaceramento sanguinário da Primeira Guerra Mundial, ao caos dos anos 20, à depressão dos 30, para ressurgir, atenuada, em Bretton Woods. Não sobreviveu, todavia, a Nixon, à Guerra do Vietnã, ao tumulto do fim do século. Hoje, ninguém mais fala disso, e nos resignamos a essa “fábula cheia de estrondo e ferocidade, balbuciada por um idiota e que não significa nada”.
O que nos espanta ao lermos o muito que se publica sobre a queda do dólar é a radical divergência sobre suas causas e acerca do remédio a aplicar, se acaso houver algum. As oscilações de abordagem são tão violentas quanto as das moedas, o que faz duvidar da possibilidade de ação terapêutica coordenada em doença cujo diagnóstico varia tanto.
Simplificando, é possível distinguir dois campos. De um lado, ficam os convencidos de que os movimentos das moedas refletem diferenças fundamentais nas economias afetadas; do outro, os que não conseguem detectar essas diferenças, atribuindo as variações a modas, caprichos e, sobretudo, especulações em mercados imperfeitos.
No interior do primeiro grupo, uns preferem sublinhar o lado negativo da economia americana: o déficit do Orçamento, o colapso da poupança, o endividamento colossal, a demanda insaciável, o consumo voraz excedendo o aumento da renda e necessitando aspirar, como parasita, a poupança do resto do mundo. Outros, de maneira pirandelliana, explicam essas mazelas como o avesso inevitável da face externa de vestuário brilhante: os déficits, o do Orçamento e o de conta corrente, é que fazem girar o mundo, oferecendo à Ásia e à Europa a demanda e o consumo que faltam a esses continentes internamente. Financiar esse consumo excessivo não é mais que a obrigação daqueles que são apenas capazes de crescer graças ao crescimento alheio, o dos EUA, e não ao dinamismo próprio.
É óbvio que as receitas mudam conforme os médicos. Os primeiros acham que Washington tem de tomar o remédio que impõe a países como o nosso: aumentar impostos, cortar despesas, produzir saldo orçamentário, melhorar a poupança, com o resultado de que o comércio e as contas externas se ajustariam automaticamente.
Se os EUA fizerem essa loucura, alertam os últimos, sua economia sofrerá tremenda contração, abalando um mundo anêmico, que mal se sustém nas pernas. A solução, para esses, é que a Europa e o Japão estimulem a demanda e o consumo internos, reduzam a poupança exagerada, que a China valorize a moeda e importe mais, que todos abandonem, enfim, o feio hábito de tomar carona no foguete americano.
Nada disso, exclamam irritados os defensores da tese da especulação e dos mercados imperfeitos. Não é preciso complicar, basta que os europeus e os japoneses intervenham conjuntamente, a fim de fazer gorar a manobra dos EUA. Essa consistiria em transferir aos outros o custo do ajuste, infligindo-lhes o máximo de sofrimento em termos de crescimento perdido com o mínimo de dano inflacionário para a economia americana (favorecida, nesse sentido, pela recente queda do petróleo).
Como se vê, uma cacofonia de recitativos numa economia supostamente racional. O resultado provável é que se agravará ainda mais a falta de coerência entre o sistema monetário e financeiro, de uma parte, e o comercial, da outra. Como sempre ocorre em desvalorizações competitivas de 30% ou mais, o primeiro vai-se ajustar à custa do segundo, tornando irrelevantes as reduções de tarifas e outras barreiras penosamente negociadas na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Nesse mergulho de montanha-russa, o Brasil corre o risco de ser cuspido da carruagem do dólar em despencada, como já vem acontecendo com o dólar a R$ 2,70, o saldo comercial e as exportações em declínio, as importações e o déficit turístico em aumento.
A segunda forte probabilidade é que o ajuste não virá pelo consenso e a cooperação. Será como na conversa do chanceler Gibson Barboza, que aconselhava o ministro do Exterior português a buscar com angolanos e moçambicanos solução à guerra por consenso e concertação. Rui Patrício não se conteve e explodiu: “Qual consenso, qual nada, senhor ministro. Vamos concertar-nos às porretadas como sempre sucedeu e ganhará quem tiver o porrete mais grosso!”. De fato, conforme ensinava outro sábio lusitano, hoje muito psicografado no Brasil, o prof. Antonio de Oliveira Salazar, “cacete não é santo, mas faz milagre!”. Nesta guerra das moedas, é fácil ver quem tem o cacete mais milagreiro.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/12/2004.