Se a soberania saiu de moda devido à globalização, por que ela é mais forte do que nunca nos EUA, inventores e principais beneficiários desse processo? Se é certo que o Estado-nação está se tornando menos importante do que as empresas transnacionais, como se explica que os bancos e grandes firmas recorram aos governos e ao FMI para ser salvos nas crises financeiras mundiais, como a de 1997-98?
Reduzido assim à expressão mais simples, o último capricho reinante sobre o Estado e a soberania vira o que os caipiras chamam de “moda de patacoada”, segundo o “Aurélio”, “qualquer moda de texto absurdo ou tolo”.
O exemplo dos EUA é eloquente, mas está longe de ser único. Não tem conta a lista de acordos e decisões de aceitação quase universal que o governo norte-americano não assinou ou não ratificou _ou ambas as coisas. Dentre eles estão algumas das etapas fundamentais da evolução do Direito Internacional desses 30 anos: a Convenção do Direito do Mar, a da Proteção à Diversidade Biológica, o tratado banindo as minas antipessoais, inúmeras convenções da Organização Internacional do Trabalho e as últimas sobre direitos humanos. Até a recente adesão americana, à Convenção sobre os Direitos da Criança, nas palavras da diretora (americana) da Unicef, só não havia sido assinada pelos EUA e pela Somália, que não tinha governo. Foi apenas no apagar das luzes que a administração Clinton resolveu firmar o tratado instituindo o tribunal penal internacional, e resta a ver se a decisão não será revogada pelo novo governo ou o Congresso.
A decisão de seguir caminho próprio, ditado pelo interesse soberano ou por firme convicção, não é de agora _basta recordar a recusa de aderir à Liga das Nações ou à natimorta Organização Internacional do Comércio, criada pela Conferência de Havana_ nem se resume aos fatos citados. Washington retirou-se há tempos da Unesco e da Unido; nunca se considerou obrigado pela meta das Nações Unidas a destinar 0,7% do PIB à ajuda ao desenvolvimento; enfrenta sérias dificuldades com a redução das emissões de carbono no âmbito do Protocolo de Kyoto; mantém em vigor as diversas seções 301 da legislação comercial que lhe autorizam o recurso a medidas unilaterais, embora seja de justiça reconhecer que não as tem utilizado; defende a aplicação, além da jurisdição nacional, das leis sobre a pesca do atum e do camarão, assim como da legislação que proíbe investimentos, até de cidadãos de terceiros países, em nações como Cuba, Iraque, Líbia.
Outros grandes países oferecem exemplos similares. Os ingleses remancham em trocar a libra pelo euro ou seu peculiar sistema de pesos e medidas pelo métrico (como, aliás, também os americanos) nem querem ouvir falar de uma Europa plenamente federal, que supere as velhas pátrias. Nisso estão na boa companhia dos franceses, os quais continuam ferozes defensores da idéia de nação, da qual se consideram os modernos inventores, quando Kellermann destroçou o prussiano invasor em Valmy aos gritos de “Vive la Nation!” Nem preciso falar de russos, chineses, japoneses e quejandos. Essa enumeração toda não se destina a criticar nem muito menos julgar os países que assim agem, mas simplesmente a constatar a realidade: os fortes e os bravos não hesitam, quando seus interesses estão em jogo, a afirmar, doa a quem doer, a soberania, que, não obstante as baboseiras sobre a globalização, vai muito bem, obrigado.
Há quem diga por aí que a interdependência econômica, o gigantismo das empresas transnacionais, as limitações decorrentes dos mercados financeiros ou dos acordos comerciais estão em vias de liquidar a soberania dos Estados.
Confundem, na verdade, dois conceitos distintos: poder e soberania. Poder é a capacidade de um país de impor a vontade a terceiros, obrigando-os a agir de determinada maneira ou a abster-se de fazê-lo. Soberania é a faculdade que tem o Estado de impor, dentro de sua jurisdição, ordem jurídica que depende dele, não de instância superior. Nem o poder nem a soberania foram ou serão jamais absolutos e não foi preciso esperar pela globalização para descobrir que sofrem de limitações de toda espécie. Na idade de ouro da soberania, nos séculos 18 e 19, as nações eram classificadas formalmente em potências de 1ª, 2ª, 3ª ou 4ª classe, de acordo com a hierarquia de poder, e ninguém achava que, por estar em baixo da escala, um país qualquer não tivesse soberania. É óbvio que os dotados de grande poder estavam em melhores condições de defender a própria autonomia (ou soberania) e de violentar a dos demais. Era assim ontem quando se obrigava, a golpes de canhão, o Império do Meio a importar ópio ou pondo a pique iates particulares na baía de Guanabara e o Império Auriverde a proibir o tráfico de escravos. É assim hoje quando se forçam países com sanções e ameaças comerciais e financeiras a mudar a lei de patentes, a pagar a dívida externa com o leite das crianças ou exemplos ainda mais atuais.
A independência e a autonomia não acabam nunca de se construir. Devem ser retomadas a cada manhã para crescer um pouco no dia-a-dia. Como souberam fazer os brasileiros de 1822, que haviam herdado da Coroa portuguesa os tratados desiguais e, a partir de posição de inferioridade de poder, conseguiram pouco a pouco se libertar. Para sorte nossa, nunca engoliram teorias espúrias para corações timoratos nem se deixaram contaminar pelo cinismo desabusado dos que admitem que manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 21/01/2001.