Mudam-se as vontades, dizia Luís de Camões. O espantoso ataque ao coração vital dos Estados Unidos não só inaugura novos tempos. Ele já mudou de golpe a vontade, isto é, a estratégia. Em lugar da guerra nas estrelas, a guerrilha rasteira, terra a terra, contra inimigo invisível. Em vez da busca da segurança individual de um só país por meio de escudo invulnerável contra mísseis de Estados bandidos, a construção coletiva de coalizões diplomáticas para combater o terrorismo de grupos de indivíduos.
Nessa sinistra alvorada de um mundo inquietante, o que mais assombra é o contraste das oposições e contradições. No momento em que os americanos pareciam prestes a atingir a invulnerabilidade, sonho humano desde a era mitológica de Hércules e Aquiles, descobrem-se sem defesa contra outro tipo de ameaça. Na guerra do Kosovo, contra exército aguerrido como o sérvio, os militares conseguiram a proeza de não ter uma só baixa do lado vencedor. No entanto um punhado de suicidas armados de facas improvisadas e lâminas de barbear logrou, com perdas mínimas da parte dos atacantes, infligir ao gigantesco adversário danos incomensuráveis, humanos e morais, materiais e simbólicos.
Não é fácil encontrar na história exemplo de tamanha desproporção de custos e resultados numa ação de tipo militar dirigida contra inimigo incomparavelmente mais poderoso. É isso o que precisamente explica a contínua atração do terrorismo como arma dos desesperados ou fanatizados. Por mais que nos custe reconhecê-lo, pois sentimos justo horror diante do sofrimento causado a inocentes, a verdade é que às vezes o terrorismo compensa, ao menos para aqueles que o praticam. Não é por outra razão que da Caxemira a Sri Lanka, da Irlanda do Norte ao País Basco, da Córsega à Tchetchênia, para não recuar ao passado recente da África do Sul do apartheid, da Argélia ou do Vietnã, o terror foi ou é utilizado para romper o imobilismo de situações congeladas pela disparidade de forças. Se o status quo é percebido como intolerável por um grupo e esse não encontra no sistema político possibilidade de promover mudanças por meios pacíficos e institucionais, a tentação da violência será sempre uma alternativa.
Essa seria obviamente a situação menos “irracional”, embora seja perigoso generalizar, pois existirão casos de ódio insensato, de fanatismo assassino, de patologia política e até de niilismo enlouquecido, de ânsia de aniquilar a civilização ocidental, conforme algumas interpretações do que acaba de ocorrer.
As investigações talvez desvendem melhor a natureza da ameaça presente. Desde já, é possível concluir que: 1º) o fim do “equilíbrio do terror” do mundo bipolar da Guerra Fria e a emergência de uma só superpotência não asseguram uma era de paz nem para essa última nem para o globo; 2º) a inviabilidade de guerra convencional de algum país contra os EUA devido ao desequilíbrio do poder não impede outro tipo de guerra total contra o povo e o governo americanos, a desfechada não por um país mas por uma espécie de ONG de terroristas sem fronteiras e constantemente mutantes.
A conclusão principal é que o recurso unilateral à tecnologia não resolve esse problema e pode até criar novos. Da mudança climática à catástrofe de Tchernobil, da “vaca louca” às facilidades abertas ao terrorismo pela globalização, os avanços tecnológicos geraram perigos inéditos, ao mesmo tempo em que eliminavam os antigos. Até a fatídica terça-feira, 11 de setembro, uma nação poderia sonhar em isolar-se do planeta e refugiar-se no castelo invulnerável do poder tecnológico, da mesma forma que se iludem os nossos milionários atrás de suas muralhas. Essa quimera viu-se estraçalhada pela terrível imagem dos aviões explodindo em chamas contra um dos símbolos da “hubris” do homem moderno: as torres mais altas do mundo.
Ocorrendo simultaneamente à queda sincronizada de todas as economias industrializadas e ao sangrento impasse no Oriente Médio, o devastador assalto contra os EUA é sinal dramático de como aumentou a taxa de instabilidade e insegurança do sistema internacional, de como se acentuaram os riscos decorrentes da imprevisibilidade ou da perda de capacidade de controle que era exercido, bem ou mal, pela anterior estrutura de poder, relativamente mais previsível. Diante desses perigos e desafios, tem-se de voltar, como faz agora o governo americano, à busca da colaboração entre as nações, à edificação de alianças e coligações, a valorizar o que nos une, não o que nos separa, a substituir a estratégia de enfatizar as diferenças _como no caso do Protocolo de Kyoto ou da recente renovação das tensões com a Rússia, a China, a Coréia do Norte_, pelo esforço de somar as iniciativas de cooperação, a prestigiar o processo democrático das Nações Unidas. É esse o único caminho para uma economia mais próspera e estável para todos, a única maneira de encaminhar o conflito palesltino-israelense em direção a um processo de paz e reconciliação entre esses dois povos que tanto sofreram.
É apenas assim que se conseguirá extirpar a calamidade do terrorismo: de um lado, removendo, na medida do possível, as causas profundas da frustração e do desespero, do outro, combatendo vigorosamente o recurso a qualquer tipo de violência contra pessoas inocentes por bandos terroristas e reagindo contra todo governo que os favoreça e proteja. É dever de todos impedir que esse novo tempo seja um tempo de barbárie e de terror. Para isso, a solidariedade com as vítimas do terrorismo tem de ser ativa. Não basta o luto, o pesar, a consternação. É preciso agir para que não se imponha a lógica desvairada da destruição e da morte, para que o mistério da iniquidade não prevaleça sobre a face da Terra.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/09/2001.