Quando os primeiros diplomatas soviéticos começaram a frequentar as reuniões internacionais, após o ostracismo inicial consequente à Revolução de Outubro, tiveram de defrontar-se com as pressões da França e da Inglaterra para submeter à arbitragem as reclamações pelos bens estrangeiros expropriados pelo novo regime. Numa dessas conferências, em 1923 se não me engano, exasperado com a recusa dos bolchevistas, o delegado britânico exclamou: “Mas será possível que no mundo inteiro não se possa encontrar ao menos um árbitro imparcial?”. Ao que o comissário do povo Litvinov respondeu categoricamente: “O problema é que não há um só mundo, mas dois: o mundo soviético e o não-soviético”.
Como desde então mudaram as coisas! Não só os russos (que não pagam seus mineiros) aceitaram pagar aos herdeiros dos detentores de títulos da dívida czarista que não usaram esses papéis amarelecidos para acender lareira ou forrar o fundo do baú. Mais importante do que isso, é evidentemente o fato de que já não existem dois mundos, mas um apenas, o do capitalismo global, da economia mais ou menos de mercado.
Este momento da história de relativo predomínio – não se sabe se temporário ou duradouro – da homogeneidade sobre a heterogeneidade, da convergência sobre a divergência, significará, porém, que a possibilidade de escolha desapareceu ao mesmo tempo que a União Soviética? Que escolher só vale quando podemos optar entre extremos e antípodas?
Usado de forma genérica e vaga, o argumento é pura ideologia e não vale nada. Seria preciso, de início, indicar exatamente o que é supostamente inevitável nas tendências atuais. Todos, creio, estamos de acordo sobre alguns pontos básicos. Primeiro, que a margem de manobra se estreitou. Ninguém, imagino, sente-se tentado a escolher entre fascismo e comunismo, entre democracia proletária ou burguesa. Segundo, já não há quem acredite em isolamento, em autarquia, em que seja possível “edificar o socialismo num só país”. Terceiro, nem os últimos comunistas preferem a pesada e ineficiente economia de comando aos mecanismos mais flexíveis do mercado.
Fora, contudo, esses e dois ou três outros aspectos fundamentais, sobra espaço considerável para organizarmos o projeto nacional ou nossa inserção no mundo de acordo com as especificidades que nos são próprias. Vejamos, por exemplo, o problema da inserção. Os países predominantes no comércio mundial e as organizações internacionais que lhes servem de acólitos dizem-nos que a melhor maneira de lograr a inserção é abrir mão de proteção e prazos de transição, de preferências e tratamentos especiais e escancarar-nos à mais absoluta competição. Um pouco como se atirar à água alguém que não sabe nadar fosse a melhor maneira, não só de evitar o afogamento mas de fazê-lo ganhar os cem metros rasos!
Comércio é, no fundo, competição e esta, como se sabe, é um jogo (não é à toa que economistas e matemáticos desenvolveram sofisticadas teorias de jogos para explicar as negociações comerciais ou de outra índole). Ora, todo jogo necessita de três coisas: regras, árbitros e treinamento. As regras são as que foram definidas na Rodada Uruguai ou nas anteriores. O árbitro é a Organização Mundial do Comércio. Mas ainda que as primeiras sejam justas e o segundo, imparcial, não basta. A fim de competir, é preciso longa preparação, treino rigoroso, aprendizado paciente. Nenhum de nós ousaria apresentar-se às Olimpíadas e tentar participar dos 200 metros com obstáculos ou do salto à distância. Só quem se preparou durante anos e galgou degrau após degrau de pré-qualificação é admitido a medir forças com seus pares. No boxe ou no judô, o peso leve não se expõe a ser massacrado pelo pesado. No futebol, os times da 2ª divisão não enfrentam os da 1ª (a não ser para treino), nem a escola de samba do grupo B disputa a avenida com a Mangueira. Por que seria diferente no comércio ou na economia?
Acaso os Estados Unidos, a França, a Alemanha, o Japão se industrializaram porque seguiram os conselhos de livre comércio que lhes prodigava a Inglaterra? Ao contrário, a primeira política de proteção industrial americana data de 1791 e leva a assinatura do então secretário do Tesouro Alexander Hamilton. Até a Primeira Guerra, os EUA aplicavam uma taifa média de 33%, três vezes maior do que a alemã e nove vezes a inglesa. Dirão alguns que ontem era ontem e hoje é diferente. Mas será mesmo? O maior sucesso dos últimos dez anos em matéria de inserção e crescimento por meio das exportações nos vem da China, que está a anos-luz do paradigma dominante em grau de abertura (parcimoniosa) de mercado, política industrial ou controle (seletivo) dos investimentos estrangeiros.
Na reunião do FMI em Hong Kong, estive presente ao notável discurso do então ministro da Economia e hoje primeiro-ministro chinês. Forma impecavelmente amável e correta, até cordial. Fundo de grande altivez e independência. Seu recado foi mais ou menos o seguinte: “Se quiserem dar-nos conselhos, ouviremos polidamente, mas não seguiremos nenhum. Temos um país complexo, quase um universo. Para cada problema, vamos primeiro testar uma solução em escala local. Se funcionar, iremos ampliando até estarmos certos de que pode ser aplicada nacionalmente. A China é a China e o resto é o resto”.
Foi aplaudido de pé, em ovação entusiasta de todos os que diziam exatamente o oposto, que a globalização impunha suas regras à China e não o inverso. Explicação? O ministro repetiu, usando quase as mesmas palavras, a canção que se tornou o lema de Frank Sinatra, “My Way”. Gostem ou não, farei do meu jeito, seguirei o meu caminho, viverei a minha verdade. Por que seria impossível fazermos o mesmo?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/05/1998.