Em menos de 12 meses, três acontecimentos portentosos se reforçaram uns aos outros para revelar que o sistema internacional começa a mudar em sua mais decisiva estrutura, por obra da unificação e da expansão da Europa.
O primeiro foi a consolidação do euro como a outra grande moeda universal de reserva, ao lado do dólar.

O segundo foi a conclusão com êxito do complicado projeto de ampliação a 25 países da União Européia, com a incorporação de dez membros, aumento de dois terços em relação à composição anterior.

Ainda mais desafiador foi o terceiro, a aprovação da Constituição Européia, que institucionaliza e dá consistência jurídica ao novo astro que se eleva no firmamento.

Cada um desses fatos mereceria, sem exagero, a qualificação de histórico. É apenas o embotamento dos nossos sentidos, insensibilizados pelo excesso de pimenta de eventos espetaculares _a queda do Muro de Berlim, os atentados do 11 de Setembro, a invasão do Iraque_, que nos impede de perceber a verdadeira hierarquia dos acontecimentos. No futuro, ao escrever-se a história dos tempos que correm, é provável que as etapas da unificação da Europa apareçam como de efeitos muito mais duradouros que a violência do terrorismo ou do seu contrário. Da mesma forma que para nós, hoje, a unificação da Alemanha e da Itália, no século 19, ofusca por completo a lembrança da Guerra da Criméia ou dos atentados anarquistas.

Quem duvida da afirmação deve refletir um pouco sobre a raridade de cada um desses fenômenos. O surgimento de uma segunda moeda mundial de reserva é, por exemplo, fato inédito desde os acordos de Bretton Woods, em 1944, há mais de 60 anos, portanto, posto que o iene japonês jamais passou de promessa e nunca alcançou a universalidade. A façanha é mais notável ainda por não se tratar da elevação de moeda nacional já consagrada como o marco alemão, o franco francês ou a libra britânica, mas de moeda de invenção fresca, introduzida poucos anos atrás em meio a incerteza e administrada pelo Banco Central Europeu com poderes supranacionais, que se superpõem às vezes aos interesses divergentes dos Estados-membros.

Desse ponto de vista, é caso único, pois todas as outras grandes moedas _o dólar, a libra, o iene, o franco suíço_ são governadas por bancos centrais de países há muito unificados, cujos elementos componentes _Estados federados, reinos unidos, Cantões confederados_ perderam a soberania ou nunca a tiveram. O aspecto não é de pouca monta, sabendo-se que soberania e moeda em geral andam juntas. Não é por outra razão que, no passado, os ingleses chamavam sua moeda de “sovereign”.

Eu poderia, se tivesse espaço, repetir essa demonstração de raridade para a aglutinação, sem precedentes, em uma só unidade, de 25 países completamente diferentes em língua, cultura, história, chegando às fronteiras da Rússia e às estepes da Ásia. É extraordinário que, mesmo depois dessa expansão, o potencial de crescimento esteja longe de exaurir-se, faltando agregar a Romênia, a Bulgária, a Turquia, quase todas as nações nascidas da decomposição da Iugoslávia, além de Moldova e Ucrânia, remanescentes do império soviético. Como entender que povos tão diversos, poloneses ou irlandeses de intenso nacionalismo, com feridas não-cicatrizadas deixadas pela história, aceitem abrir mão de boa parte da soberania mesmo agora, quando desapareceu a ameaça soviética que antes justificava a unificação?

Uma das explicações, não exclusiva por certo, é que, no seio da UE, o equilíbrio entre Alemanha, França e Reino Unido afasta o receio de ser esmagado por um gigante hegemônico, o que ocorreria, sem dúvida, numa integração dos latino-americanos com a superpotência dominante, os Estados Unidos. Indício a mais das vantagens do equilíbrio em qualquer sistema internacional.

Em 1905, exatamente cem anos atrás, os americanos inauguravam, com a mediação de Theodore Roosevelt na Guerra Russo-Japonesa, sua inexorável ascensão como astro destinado à hegemonia indiscutível de que hoje desfrutam. Para os contemporâneos, obcecados com as bravatas do kaiser e os intrincados jogos de poder entre França, Alemanha, Reino Unido, Rússia, Áustria-Hungria, o aparecimento desse jovem sol no horizonte passou quase despercebido. Não assim para o Barão do Rio Branco, a cuja perspicácia de observador experimentado não escapou o incipiente fenômeno, que descreveu nos seguintes termos em despacho à nossa representação na capital americana: “A verdade é que só havia grandes potências na Europa, e hoje elas são as primeiras a reconhecer que há no Novo Mundo uma grande e poderosa nação com que devem contar”.

O mérito do Barão foi não só ter detectado a transformação nascente mas haver agido em conseqüência. Com rapidez, deslocou o eixo da diplomacia brasileira de Londres para Washington, nomeando Joaquim Nabuco para chefiar a primeira de nossas representações em nível de embaixada. Eram raras, na época, as embaixadas, e nos EUA havia apenas sete, das quais a mexicana era a única da América Latina, não existindo nenhuma até então no Rio de Janeiro. Por esse gesto simbólico, Rio Branco preparou a aproximação, que viria mais tarde a ser chamada de “aliança não-escrita”.

Os tempos hoje são outros, e o desafio é reconhecer os sinais de novo e profundo movimento de transformação da macroestrutura internacional, tirando disso as lições práticas que se impõem. É como parte desse esforço que, em colaboração com o Consulado de Luxemburgo, país que detém, no momento, a Presidência da UE, a Fundação Armando Alvares Penteado realizará, na manhã de 2 de março, o primeiro fórum para analisar, com propostas práticas, as implicações para os interesses brasileiros, da emergência desse astro de primeira grandeza econômica e política.

Tomados em conjunto, os 25 atuais europeus e mesmo os 15 anteriores já são o principal parceiro comercial do Brasil, sua primeira fonte de investimentos diretos e a praça financeira da maioria dos empréstimos nacionais. Há obstáculos, porém, para aprofundar esse relacionamento, como se vê da dificuldade em concluir o acordo comercial com o Mercosul. Em futuro artigo, examinarei, de modo concreto, alguns desses desafios.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/02/2005.