Ao rejeitar, no domingo passado, por quase 80% dos votos, a antecipação de negociações sobre a adesão à União Européia (UE), a população suíça nos ensina que é o interesse nacional, não o temor do isolamento ou a suposta inevitabilidade, o critério para decidir se uma proposta como a da Alca convém ou não ao Brasil. Encravada no coração do continente, cercada de todos os lados por países-membros da UE com os quais realiza a parte mais substancial de suas transações comerciais e de toda espécie, a Suíça pareceria predestinada a não ter escolha. No entanto a maioria desse pequeno povo de 7 milhões recusa o fatalismo da adesão, agora ou mais tarde. O próprio governo e a minoria favorável (os Cantões de língua francesa) não queriam precipitar as coisas neste momento em que a maioria não está preparada e preferiram ir celebrando acordos parciais até que se dêem as condições propícias a negociação que possa merecer o apoio do país.

Não se assustam com os duvidosos prejuízos da espera, de igual forma aos noruegueses, que também optaram por não entrar. Outros que estão dentro, como os britânicos, suecos, dinamarqueses, não conseguiram até agora o apoio doméstico para endossar aspectos essenciais da unificação, tais como a moeda única.

O traço comum a esses casos é a demonstração de que é possível, no interior de espaço incomparavelmente mais avançado de integração regional como o europeu, afirmar certa margem nacional de escolha ou de velocidade diversa no ritmo de inserção. O que faz essa diversidade de respostas possível e até obrigatória é o profundo caráter democrático de sociedades em que todas as questões cruciais para o futuro são objeto de debate exaustivo, sem segredos de Estado, como informação abundante, antes de ser submetidas à decisão do povo. Mesmo países sem a tradição suíça do recurso frequente aos referendos ou plebiscitos não hesitaram em reconhecer aos cidadãos o direito de dar a última palavra por meio de consulta popular, pois estava em jogo o destino da nacionalidade. Frequentemente, e não só na Suíça, os governos foram desautorizados pelas populações.

Nem por isso se fecham as portas a possível reconsideração de tema cuja constante evolução pode aconselhar aceitar amanhã o que hoje se afigura pouco vantajoso. O Reino Unido permaneceu anos a fio fora do Mercado Comum Europeu e continua profundamente dividido em relação ao euro, sem ter sofrido maiores danos. Ao contrário, em vários momentos, teve desempenho econômico superior ao dos demais europeus, conforme ocorreu ao desvalorizar unilateralmente a libra no início dos 90.

A analogia com a Europa ilumina claramente o terreno do indispensável debate sobre a Alca e lhe traça as duas balizas extremas: de um lado, os que julgam o acordo inevitável, do outro, os que o consideram inconcebível. Nem uma coisa nem a outra aconselharia o bom senso, pois essas duas posições simétricas mas opostas padecem de comum vício de origem: são ambas apriorísticas. A atitude a priori é a que se define com anterioridade à experiência concreta e independentemente dessa, não se prestando, portanto, à natureza prática de uma negociação de comércio na qual o que conta são os resultados tangíveis.
Não é que faltem argumentos teóricos de peso aos partidários de cada tese, o que converte a discussão em enredo emaranhado no qual se deve guardar a cabeça fria e a humildade de levar a sério o ponto de vista contrário. A demonstração padrão básica sobre a inevitabilidade da Alca parte do reconhecimento do poder quase incontrastável dos EUA, passa pela sua influência determinante sobre todos ou quase todos os latino-americanos, mesmerizados pelas seduções do mercado consumidor do Norte. Inspira-se na tendência supostamente irresistível para a divisão do mundo em blocos subordinados a uma grande potência econômica, culminando na ameaça do isolamento comercial e político do Brasil no continente. Em sua expressão pior, resvala no cinismo da frase popular americana: “If you can’t beat them, join them”, isto é: “Se você não é capaz de vencê-los, é melhor juntar-se a eles”.

Os opositores tomam igualmente como ponto de partida o diferencial de poder, mas em sentido inverso, o da velha fábula que recomenda não entrar em conchavos com o leão, sob pena de deixar-lhe a pele. Removidas as barreiras internas de proteção ou as margens de preferência aduaneira nos países latino-americanos, não acreditam que poderíamos competir, dentro do nosso mercado ou nos dos vizinhos, contra a primeira potência do mundo em comércio, indústria, finanças e tecnologia. Estão convencidos de que o acordo hemisférico não é compatível com o Mercosul e acabará por engoli-lo, inviabilizando, do mesmo golpe, a aspiração a edificar uma identidade econômica e diplomática para a América do Sul. A fim de escapar ao perigo do isolamento, tombaríamos na vala comum de uma subalternidade que partilharíamos em promíscua associação com 30 outros.

O simples enunciado sumário de tese e antítese basta para indicar que nos defrontamos não com o trivial de secos e molhados, mas com problemas cruciais que poderão definir o projeto de país para os próximos cem anos. A fim de evitar erro de consequências talvez irreparáveis, deve-se afastar de saída as duas posturas apriorísticas: a de inevitabilidade, porque psicologicamente entrega a negociação antes de começar, e a de que o acordo é inconcebível, porque torna qualquer negociação inviável. É o que tentarei demonstrar a partir da próxima semana.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/03/2001.