No tempo em que Ortega y Gasset estava na moda, era freqüente repetir sua frase de que “o homem é o homem e sua circunstância”. Isto é, cada um de nós é ele mesmo, aquilo que se pode reduzir à genética pura, mais tudo o que o cerca (“circum”), seu tempo, seu país, seu meio. É menos comum aplicar tal verdade ao desempenho econômico das nações, em que a tendência é a de exagerar _como no caso da China_ a componente nacional do êxito ou, no extremo oposto, o dos africanos, atribuir o fracasso à inépcia interna.
Essa cegueira em relação à influência, muitas vezes determinante, do contexto econômico global que nos envolve não chega ao ponto de ignorar que nosso destino depende em boa parte da expansão e da estabilidade da economia mundial, das decisões que tomem os americanos sobre o déficit do seu Orçamento ou o valor do dólar diante das outras moedas. É mais raro, no entanto, que se olhe para a circunstância mais imediata e próxima de nós, a dos países latino-americanos. Um exercício salutar para sanar a lacuna é ler o “Balanço Preliminar das Economias da América Latina e do Caribe”, que a Cepal costuma publicar em fins de dezembro.
Quem fizer isso há de descobrir que somos muito mais latino-americanos do que pensamos. Até, quem sabe, com uma ponta de amor próprio ferido, veremos que nossos êxitos não são tão espetaculares assim, que há resultados melhores (e piores) perto de nós. Muito da nossa jactância e a de nossos vizinhos se deve simplesmente a de termos sabido surfar na crista de uma onda favorável. Em outras palavras, fomos bafejados pela fase ascendente do ciclo.
Tudo isso já era evidente em 2003, quando o ciclo mundial acentuou sua recuperação, puxado pelos Estados Unidos, pelo bólido da economia chinesa com sua insaciável voracidade por matérias-primas e pelos primeiros sinais da recuperação japonesa. Naquele ano, os dois maiores sucessos alardeados pelo Brasil _o enorme saldo exportador e, mais significativo, o modesto saldo em conta corrente_ corresponderam simetricamente às duas principais conquistas latino-americanas: saldo exportador de cerca de US$ 32 bilhões e saldo em conta corrente, o primeiro em quase meio século, de US$ 8 bilhões (0,5% do PIB).
No ano passado, a correspondência entre Brasil e América Latina passou a ser fotográfica, como se o instantâneo da economia latino-americana fosse cópia ampliada da brasileira. Assim, o crescimento do continente foi de 5,5%, e o aumento do PIB per capita, de 4%, valores superiores aos nacionais. Exceto o Haiti, todos os mais de 30 países da região apresentaram crescimento, alguns de natureza espetacular, a fim de recuperar colapsos recentes, como foram os casos da Venezuela (18%), do Uruguai (12%) e da Argentina (8,2%).
No setor externo, as exportações cresceram 22,4%, metade, mais ou menos, em volume e metade devido à alta de preços. O saldo comercial, que desde 2002 vem se expandindo a US$ 20 bilhões anuais, atingiu o recorde de US$ 61,8 bilhões (3,2% do PIB). O saldo exportador, somado ao aumento das remessas de imigrantes (US$ 40,2 bilhões), compensou os déficits de serviços (US$ 14,2 bilhões) e de rendas (US$ 65,2 bilhões!), produzindo, pela segunda vez desde 2004, um saldo em conta corrente, que foi de US$ 21,9 bilhões (1,1% do PIB).
Esse último resultado é particularmente expressivo, uma vez que o excedente em conta corrente triplicou o de 2003. Não obstante, por razões que examinarei em futuro artigo, as transferências líquidas de recursos ao exterior _leia-se basicamente aos EUA_ foram de US$ 84 bilhões, equivalentes a 4,3% do total do produto bruto produzido pelo trabalho de centenas de milhões de latino-americanos, ao passo que, em 2003, havíamos transferido US$ 34,4 bilhões, ou 2% do PIB.
Traduzido em miúdos, isso significa que a América Latina continua a sofrer de uma hemorragia contínua de capitais. Nosso esforço para gerar saldo exportador e o dos nossos pobres patrícios que emigraram resultaram, em última análise, nesse perverso resultado: ajudamos a financiar o desperdício consumista americano, as aventuras militares dos EUA e seus megadéficits. Agravou-se, uma vez mais, o absurdo dos absurdos: países paupérrimos em capital alimentam com o pouco que têm os excessos e a indisciplina da maior economia do mundo.
Voltando ao comércio, a onda favorável em cuja crista navegamos foi, acima de tudo, a melhoria dos termos de intercâmbio, diferentemente do que ocorrera em 2003, quando o desempenho comercial positivo se deveu ao aumento dos volumes exportados e à fraqueza das importações. Já em 2004, o surpreendente resultado da balança comercial latino-americana teve menos a ver com o excedente das exportações sobre as importações, sendo principalmente o reflexo da valorização dos termos de intercâmbio, superior em 130% à variação da balança de mercadorias.
O que significa isso? Simplesmente que o aumento de preços dos produtos vendidos pela América Latina foi de 10,5%, enquanto os bens que importamos só ficaram 4,7% mais caros. A melhoria de termos de intercâmbio foi, assim, de 5,8%, o que dificilmente há de repetir porque, a partir de abril de 2004, percebe-se nítida tendência baixista nos preços dos produtos primários.
Conforme bem diz a Cepal, o excelente desempenho exportador da América Latina provém, em larga medida, do Mercosul e dos andinos, cuja capacidade de oferta é concentrada num grupo limitado de produtos agrícolas e minerais, cujos preços parecem ter atingido o pico. A solução é mudar o padrão de inserção internacional, mediante a redução gradual da dependência da exportação de produtos baseados em recursos naturais com escasso valor agregado. Tal receita se aplica não apenas à nossa circunstância, isto é, à América do Sul, mas ao próprio Brasil.
Apesar da importância da contribuição brasileira aos valores totais do saldo comercial e de conta corrente alcançados pela região, a natureza dessa contribuição não é diferente das demais, pois se baseia, no essencial, em mercadorias de baixo valor agregado. A onda conjuntural começa a virar contra nós, não só em relação aos termos de intercâmbio mas também no que se refere aos manufaturados, cuja exportação será fatalmente prejudicada pela valorização do real. É nessa virada da onda que temos de provar nossa capacidade de equilíbrio.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/01/2005.