De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a alma? Será que a integração externa significa necessariamente a desintegração interna?
Foi com essas perguntas que comecei o artigo publicado neste mês pela revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Ao longo deste ano, de especial significado para o Brasil, pediu-se a várias pessoas que escrevessem em cada edição, em rubrica sob o título de “Dilemas e Desafios”. O instituto, hoje sob a direção do professor Alfredo Bosi, organizou cerimônia para o lançamento do 40º número da revista, evento que me trouxe em complicado périplo, de Adis Abeba, na Etiópia, a São Paulo, passando por Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro.
Formulei a questão em termos de dilema no sentido figurado do Aurélio: “situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas”. Com efeito, a cada hora nos repetem que, no império da globalização, não temos escolha a não ser a de nos inserir na economia mundial, mesmo ao preço da liquidação da indústria doméstica e com o sacrifício da autonomia decisória. No entanto, esse caminho não só é escabroso, semeado de crises destrutivas, como pode ameaçar a coesão interna da sociedade pelo aumento do desemprego, da desigualdade, das tensões regionais.
O risco não é imaginário pois a própria história do Brasil é, em larga medida, a ilustração de como a integração externa conduz, em certos casos, à desintegração interna. Por mais de 350 anos, de 1537 a 1888 (pelo menos), o país esteve perfeitamente integrado à economia-mundo: exportava quase todo o açúcar e café que produzia, sua infra-estrutura de portos, ferrovias e serviços públicos estava em mãos de investidores privados estrangeiros e, desde a Independência, rolava a dívida externa contraída em Londres, com periódicos episódios de moratórias e renegociação.
Tudo isso era sustentado sobre sistema de escravidão com latifúndio, que só conseguiu durar o que durou justamente por contar com mercados externos para escoar seus produtos. Assim, o mesmo processo que nos integrava para fora, nos desintegrava para dentro. Pode-se, de fato, conceber maneira mais segura de condenar uma sociedade ao desequilíbrio e falta de coesão do que dividi-la em minoria que monopoliza a liberdade, a cidadania e a terra e maioria escrava, sem poder, direitos ou acesso aos bens de produção?
O exemplo da nossa história mostra bem que, na integração ao mundo, o que conta é a qualidade, não a quantidade, não a instantaneidade do tratamento de choque (como na Rússia), mas o avanço gradual e seguro, sem retrocessos (como o da China).
Nessa matéria não parecem ter razão os extremos. De um lado, os que negam radicalmente a possibilidade de inserção qualitativa no esquema concentrador da globalização. O que deixa sem explicação o espetacular crescimento econômico da China ao longo de mais de 20 anos, em boa parte devido ao efeito dinamizador das exportações: estas cresceram de US$ 1 bilhão em 1979 a mais de US$ 200 bilhões atualmente! Ou idêntico êxito de um punhado de países asiáticos, sete ou oito, dos quais o mais indiscutível talvez seja Cingapura, cujo ex-primeiro-ministro resumiu-lhe a trajetória no sugestivo título de suas memórias: “Do Terceiro ao Primeiro Mundo em uma geração”.
Tampouco acertam, no pólo oposto, os propagandistas do triunfalismo globalizante, que se agarram em uma dezena de sucessos relativos, passando sob silêncio 150 casos complicados. Esquecendo sobretudo que não existe modelo único e invariável para dar certo, menos ainda o do Consenso de Washington, cujo rígido figurino aparentemente inspirou os asiáticos a fazer o contrário.
O que impressiona, ao examinar os vencedores, é precisamente sua diversidade no dosar os ingredientes do êxito, que vão da importância da agricultura (primordial na Tailândia, inexistente em Hong Kong), passando pela abertura comercial (quase total nesta última, muito limitada na China e na Índia) até o papel do capital estrangeiro (essencial em Cingapura e Hong Kong, extremamente modesto na Coréia). O que existe de comum? Além de um mínimo de estabilidade política e macroeconômica, três características: 1ª) um Estado com relativa autonomia, dotado de tecnocracia com razoável competência; 2ª) uma estratégia nacional que não se confunde com a crença em que a boa macroeconomia é condição necessária e suficiente, correndo o resto por conta do automatismo do mercado; 3ª) a presença, desde o início, de forte componente distributivo de riqueza e acesso aos bens de produção (reforma agrária radical do pós-guerra no Japão, Coréia, Taiwan) e de renda, possibilitando reduzir a pobreza de mais de 65% a 10% ou menos.
Minha conclusão é moderada e cautelosamente positiva. É difícil, mas possível, utilizar a globalização para promover um desenvolvimento integrador, desde que se preserve a autonomia de projeto nacional que se traduza em processo gradual de inserção mediante políticas de competitividade tecnológica e exportadora ao nível microeconômico das empresas.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/12/2000.