O “sound bite” do presidente Bush sobre o eixo do mal roubou o espetáculo: só se falou nisso, deixando na sombra as consequências mais graves do anunciado no discurso sobre o estado da União. Repetiu-se o que se passara quando o presidente usou a palavra “cruzada”. Certas expressões de inconfundível carga histórica e simbólica causam mais complicação do que esclarecimento ao serem utilizadas fora do contexto.
A reação mais viva partiu de novo dos aliados europeus, para os quais eixo evoca antes de tudo a fatídica aliança de Berlim, Roma e Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se, no caso, de alinhamento diplomático e militar, com operações de colaboração concreta no terreno, entre as mais formidáveis potências militares que contestavam a ordem internacional sustentada pelas democracias ocidentais.
Dessa vez, aplica-se a palavra a grupo arbitrário formado pela Coréia do Norte, o Iraque e o Irã. As duas primeiras são talvez as nações mais isoladas e desprovidas de aliados do planeta e nenhuma pode ser tomada a sério como potência. Os críticos questionam sua junção dentro de um bloco, posto que é notória a inimizade que opõe as duas últimas e não consta que haja colaboração ativa ou aliança de qualquer natureza entre esses países, assemelhados apenas pela busca de armas nucleares e o apoio a tendências extremistas.
O ministro do exterior britânico achou que o discurso se explicava pela política interna, enquanto o francês, mais contundente, opinou que era simplismo querer reduzir os problemas mundiais ao terrorismo. Desse modo, em menos de seis meses, a coalizão antiterrorista começa a ser testada pelas visões políticas divergentes entre os EUA e seus aliados. Embora as críticas realcem os problemas de credibilidade da política externa americana, elas não atingem o âmago da questão: a crescente disparidade de poder, que torna os aliados prescindíveis de fato, se não de direito ou em termos de legitimidade.
O desafio central do discurso era de fato apresentar uma das mais extraordinárias e rápidas expansões das despesas militares da história recente como plenamente justificada pela existência de ameaça iminente e proporcional. Para isso, não bastava o espectro do terrorismo de organizações como Al Qaeda, cuja natureza requer medidas diferentes, aliás previstas no orçamento, tais como os US$ 18 bilhões destinados à segurança doméstica. A última vez em que houve aumento comparável, no início do governo Reagan, o pretexto era a corrida estratégica contra a URSS. Agora, porém, não há mais União Soviética, e outros longínquos rivais, como a China, apoiaram de maneira geral a campanha antiterrorista. Concretiza-se finalmente a “ameaça” feita aos americanos por Arbatov, conselheiro de Gorbatchov, à véspera da desintegração soviética: “Vamos fazer a vocês algo terrível _privá-los de um inimigo!”.
O que ressalta desse episódio é o esplêndido isolamento dos EUA no pináculo do poder, principal característica definidora do sistema internacional no momento e no futuro previsível. O próprio aumento do orçamento militar tende a acentuar ainda mais essa primazia e torná-la menos passível de ser alcançada por outros. A expansão de quase 15% no próximo ano (US$ 379 bilhões) é apenas o começo. Em cinco anos os recursos do Pentágono vão crescer em mais de um terço (US$ 120 bilhões), até chegar em 2007 ao maior montante dos últimos 20 anos (US$ 451 bilhões).
O extraordinário é que os EUA já representam 36% dos gastos militares do mundo inteiro, despendendo mais que a soma das nove nações no topo da lista: China, Rússia, França, Reino Unido, Japão, Alemanha etc. Se juntarmos o esforço dos aliados da Otan e do Pacífico, as despesas americanas respondem por cerca de 85% do total dos dispêndios militares.
É situação sem precedentes na história moderna ou antiga. De acordo com o professor Paul Kennedy, de Yale, nem Felipe 2º, da Espanha, nem mesmo o Império Romano chegaram jamais a dominar proporção tão esmagadora do dispêndio militar agregado em todo o globo. Até em relação a seus mais próximos aliados, é crescente a dianteira assumida pelos americanos tanto em termos de volume de gastos como na qualidade de sua composição. Assim é que atualmente os EUA despendem quatro vezes mais que os europeus em pesquisa e desenvolvimento tecnológico (US$ 40 bilhões, contra US$ 10 bilhões), e essa vantagem passará a ser de cinco para um no próximo ano.
Esse é um dos motivos da constante redução da participação efetiva dos aliados nas operações bélicas, do Iraque à Bósnia, dessa ao Kosovo e, recentemente, no Afeganistão, onde, segundo o professor Kennedy, “os EUA fizeram 98%, os britânicos, 2%, enquanto o Japão navegava ao redor das Ilhas Maurício”… Em fórmula ainda mais ferina, o ex-chefe do estado-maior americano, Shelton, indagado sobre o que esperava dos europeus na Bósnia, respondeu: “Bem, os europeus poderão ajudar as velhinhas a atravessar a rua em Pristina”…
A superioridade tecnológica americana é de tal ordem que, no fundo, nem os europeus nem os demais podem aportar-lhe grande coisa. Foi justamente o investimento em tecnologia que permitiu aos Estados Unidos conquistar duas posições que pareciam inatingíveis poucos anos atrás. A primeira é a invulnerabilidade em combate, já que as baixas do lado vencedor nos últimos conflitos têm sido tão insignificantes a ponto de poderem ser consideradas nulas para operações dessa envergadura e custo (estima-se que a guerra no Afeganistão tem custado US$ 1,8 bilhão por mês). A segunda é a superioridade estratégica quase absoluta, exceto no terreno das armas nucleares, em que só o êxito do escudo antimísseis poderá assegurar certa invulnerabilidade ao território americano.
Não se vê bem como esse panorama poderá mudar em futuro plausível. Os possíveis competidores se dividem em dois grupos em relação à disponibilidade de meios econômicos e capacidade científica para tentar chegar perto dos americanos. Há, de um lado, os que podem, mas não querem fazer o sacrifício necessário (europeus e japoneses). Do outro lado, estão os que querem, mas não podem (chineses, russos, hindus).
Ensinavam os tratadistas de outrora que a “monarquia universal”, isto é, a preponderância total de uma só potência no sistema internacional, em lugar do equilíbrio multipolar ou bipolar, era condição rara, difícil de impor, pois as outras potências tinham interesse em coligar-se para evitá-la. Uma vez estabelecida, entretanto, tendia a durar longo tempo, como o Império Romano, que resistiu por quase cinco séculos. Próximos dessa posição, os americanos disporão certamente do poder para prevalecer sobre os “eixos do mal” que identifiquem como ameaça. Mais difícil é saber se serão capazes de contribuir, na base da moderação e do equilíbrio, para a construção da verdadeira paz, a que nasce não da enganadora segurança militar, mas do sentimento compartilhado de justiça e equidade.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/02/2002.